PENSAMENTO PLURAL O cerco do turismo predatório, por Palmarí de Lucena

Em seu comentário, o escritor Palmarí de Lucena afirma que “o descontrole urbano na orla e no Centro Histórico reflete um modelo de turismo predatório, sustentado pela omissão da prefeitura e pela especulação imobiliária”. A expansão de pousadas irregulares, o som abusivo, o caos no trânsito e as tentativas de elevar o gabarito dos prédios à beira-mar revelam a conivência política com o desgoverno. Falta planejamento, sobram interesses — e a cidade paga o preço do “progresso” desordenado. Confira íntegra…

A cidade parece ter perdido o compasso entre o acolhimento e o caos. Nas manhãs e fins de semana, o trânsito na orla e nas principais artérias tornou-se um campo de provas de paciência — ou, mais precisamente, uma gincana de malcriação motorizada. Motos de entregadores cruzam as faixas com pressa, ziguezagueando entre carros e pedestres como se o código de trânsito fosse apenas uma sugestão. A pressa do trabalho e a falta de fiscalização se encontram em um perigoso ponto cego: o da indiferença à segurança.

O cenário se agrava com a chegada de ônibus de turismo, que despejam centenas de visitantes em plena via pública, obstruindo faixas de pedestres e estacionando sobre calçadas. Nas ruas paralelas à Avenida Cabo Branco, o improviso reina — ônibus e vans transformam os espaços residenciais em estacionamentos improvisados, obrigando motoristas locais a se desviarem como podem. O pedestre, por sua vez, tornou-se figurante em uma coreografia urbana sem regras.

A chamada “explosão turística” se reflete também no ambiente físico e humano do bairro. A expansão de condomínios e a proliferação de pequenos hotéis e pousadas — muitos deles sem estrutura adequada ou garantias mínimas de segurança — revelam a precariedade do modelo adotado. A cada nova construção, uma parte da mata remanescente cede lugar ao concreto, e equipamentos turísticos outrora bem cuidados se degradam sob o peso do abandono e da superexploração. Basta caminhar pela calçadinha do Cabo Branco para perceber o quanto o excesso de visitantes e a omissão do poder público ferem a paisagem e a vida de quem ali reside.

Qualquer tentativa de regulamentar o tamanho de bares, quiosques e barracas ao longo da calçadinha parece ter sido abandonada. O aumento de áreas cobertas, o som abusivo e a ocupação desordenada confirmam o descompromisso do poder público com a função de ordenar o espaço urbano. O que deveria ser um cartão-postal da cidade se converteu em moeda de troca eleitoral — um território onde prevalece a lógica da permissividade e da especulação, alimentada por interesses privados e pela próspera “indústria dos crachás” de eventos. O resultado é um cenário de degradação consentida, no qual o espaço público se confunde com o lucro particular.

Um passeio pelo Centro Histórico desnuda a retórica oficial sobre a recuperação urbana. Prédios abandonados convivem com fachadas recém-pintadas já cobertas por grafites; árvores crescem nos telhados de casarões; e no Ponto de Cem Réis e entorno da Lagoa do Parque Solon de Lucena, multiplicam-se camelôs, flanelinhas e vendedores de frutas, compondo um mosaico caótico onde o trânsito, o ruído e a desordem urbana se tornaram rotina. A promessa de revitalização cedeu lugar à improvisação e ao descuido, transformando o patrimônio histórico em vitrine de abandono.

Para completar o quadro de descaso, surgem tentativas de modificar o gabarito que regula a altura dos prédios à beira-mar — um movimento que, sob o pretexto do progresso, busca ampliar o leque da especulação imobiliária. Essa investida tem raízes políticas evidentes, alimentada por alianças entre empresários da construção civil e setores influentes do poder local. O risco é claro: ao elevar os prédios, rebaixam-se as prioridades públicas e se condena a orla a um futuro de sombras, tanto literais quanto morais.

O que poderia ser um movimento de vitalidade econômica transformou-se em uma agressão silenciosa ao cotidiano dos moradores, que pagam impostos, mas colhem apenas desconforto. O turismo, quando não planejado, se converte em uma forma de saque — não de riquezas materiais, mas da tranquilidade e da qualidade de vida.

É urgente que se estabeleçam regras claras, taxas e políticas públicas capazes de equilibrar o desenvolvimento turístico com o direito ao sossego urbano e à preservação ambiental. A cidade precisa ser vivida, não explorada; compartilhada, não tomada. Porque, no fim, são os residentes que permanecem quando o último ônibus parte, recolhendo, junto com o lixo e o barulho, os sinais de uma cidade que insiste em sobreviver ao desgoverno disfarçado de progresso.

 

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