O mundo entrou na era da interdependência armada, em que tarifas e sanções viram armas estratégicas, observa o escritor Palmarí de Lucena em seu comentário. Os Estados Unidos, que por décadas usaram sua posição privilegiada, agora enfrentam rivais capazes de retaliar. “O Brasil conhece essa lógica: sob Trump, sofreu um tarifaço de 50% apesar de gerar superávit para Washington — chantagem econômica travestida de “segurança nacional”. A ordem global corre o risco de fragmentar-se em blocos rivais”, acrescenta. Confira íntegra...
Quando Washington anunciou, em junho, um “acordo provisório” com a China, não se tratava da utopia trumpista de grandeza unilateral nem da rivalidade gerida sonhada pelo governo Biden. Foi, antes, o marco de uma nova era: a da interdependência armada, em que os Estados Unidos começam a experimentar o que por décadas aplicaram contra outros países — transformar dependências econômicas em instrumentos de coerção política.
Nesse mundo, tarifas, sanções, restrições a exportações e ataques a cadeias de suprimentos funcionam como armas estratégicas. Durante mais de duas décadas, Washington manipulou pontos de estrangulamento globais — finanças, tecnologia, comunicação — para ampliar seu poder. Agora, porém, outros também aprenderam a usar esse arsenal. A recente barganha com Pequim ilustra essa vulnerabilidade: em troca do relaxamento chinês sobre minerais raros, vitais para a indústria automotiva, Trump flexibilizou controles de exportação de semicondutores. O que parecia um gesto de força revelou-se uma negociação defensiva.
A comparação com a era nuclear não é exagerada. Assim como as bombas atômicas se multiplicaram entre rivais, os instrumentos de coerção econômica se espalham rapidamente. A China construiu sua própria máquina de controle de fluxos tecnológicos e minerais estratégicos. A Europa, embora disponha de ativos poderosos como a ASML e o sistema SWIFT, hesita em transformar sua capacidade em influência, dividida entre interesses nacionais e a dependência militar dos EUA. O resultado é um continente que fala em “instrumentos anticorrupção” e “resiliência tecnológica”, mas raramente consegue agir de forma coordenada.
O paradoxo maior está nos próprios Estados Unidos. Enquanto o mundo se reestrutura, a administração Trump mina os pilares que sustentavam a vantagem americana. Cortes em órgãos como o Tesouro e o Departamento de Estado corroem a expertise acumulada para gerir crises complexas. A lógica do improviso substitui a de longo prazo. Ao invés de reforçar a máquina institucional para enfrentar desafios globais, Washington desmonta as engrenagens que garantiam previsibilidade e confiança.
Essa erosão não afeta apenas a capacidade coercitiva. Enfraquece também a atratividade do chamado American stack — o conjunto de tecnologias, regras e instituições que amarrava países à órbita dos EUA. Se antes aceitar a internet aberta significava, inevitavelmente, usar plataformas americanas, agora cresce o risco de que outros blocos tecnológicos, como o chinês no campo da energia e dos minerais estratégicos, se tornem mais sedutores.
O mundo da globalização liberal prometia competição pacífica. O mundo da interdependência armada entrega hierarquias, retaliações e instabilidade. Ao insistir em usar seus instrumentos de forma arbitrária, os EUA alimentam a fragmentação que hoje os ameaça. O alerta do ex-secretário do Tesouro Larry Summers é eloquente: “talvez ainda mais preocupante do que a fragmentação da economia global é a percepção crescente de que o fragmento americano pode não ser o melhor para se associar”.
A história sugere uma saída. Diante da proliferação nuclear, os EUA investiram em instituições e estratégias para evitar o desastre. Agora, precisam fazer o mesmo com a interdependência armada: abandonar o unilateralismo, buscar acordos de contenção e reconstruir um sistema internacional baseado em confiança mútua. Caso contrário, caminharão para uma realidade em que hegemonia e declínio se reforçam mutuamente.
O dilema é claro: transformar a interdependência em espaço de cooperação ou deixá-la degenerar em arma de destruição lenta da ordem global. A escolha dos EUA determinará não apenas seu futuro, mas o de todos que ainda acreditam que a economia mundial pode ser mais do que um campo de batalha.
Os textos publicados nesta seção “Pensamento Plural” são de responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a opinião do Blog.