PENSAMENTO PLURAL O Deus político e a polarização religiosa no Brasil, por Palmarí de Lucena

Em seu comentário, o escritor Palmarí de Lucena lembra a tese de Mark Lilla sobre como o “deus político” encontra eco no Brasil, onde a ascensão evangélica se transformou em força desproporcional. Bancadas parlamentares moldam leis e bloqueiam reformas, enquanto púlpitos viram palanques eleitorais. “A polarização religiosa divide famílias, fragmenta comunidades e legitima o uso de recursos públicos como extensão de igrejas”, diz. A laicidade do Estado é corroída, e a democracia corre o risco de se tornar refém da fé organizada. Confira íntegra...

Em O Deus Natimorto, o escritor Mark Lilla lembra que a modernidade nunca conseguiu expulsar o sagrado da política. O “deus da política” ressurge em novas roupagens, investindo líderes com aura messiânica e transformando crenças em projetos de poder. No Brasil, essa realidade se materializa no protagonismo evangélico, que se tornou uma das forças mais determinantes da vida pública.

A bancada evangélica hoje exerce poder desproporcional no Congresso, impondo sua pauta moral e condicionando decisões estratégicas. Não são raros os casos em que políticos, longe de serem exemplos de virtude ou retidão, assumem o papel de porta-estandartes de guerras culturais. Escudados no discurso da família e dos valores cristãos, negociam cargos, travam reformas e se apresentam como profetas da moralidade, mesmo com trajetórias marcadas por contradições e denúncias.

O fenômeno, porém, não se limita à esfera institucional. Ele se infiltra no tecido social, transformando diferenças religiosas em trincheiras políticas. Em visita a uma comunidade quilombola, vimos como famílias inteiras se dividem por narrativas de fé. Igrejas locais se fragmentaram, umas pregando a defesa incondicional de líderes que se proclamam guardiões dos valores cristãos, outras resistindo à instrumentalização da religião. O resultado é um racha que mina a coesão comunitária, antes sustentada pela solidariedade.

Essa divisão ganhou força nas eleições de 2018 e 2022. No segundo turno presidencial, templos se transformaram em palanques, e a retórica religiosa ocupou o centro do debate. Pastores alertavam seus fiéis contra “o inimigo da fé”, associando adversários políticos a ameaças à família, à moral cristã e até à própria existência da religião. Não era apenas campanha eleitoral; era quase pregação escatológica. A disputa presidencial assumiu a forma de batalha espiritual, polarizando ainda mais o país.

Também nas eleições municipais recentes, observou-se a mobilização religiosa em massa. Prefeitos e vereadores receberam apoio decisivo de igrejas que orientaram votos diretamente do púlpito. Em muitas cidades, a escolha do candidato deixou de ser questão de proposta ou gestão, passando a ser decisão de fé.

Esses episódios revelam algo ainda mais grave: a polarização religiosa não serve apenas como combustível de divisão social ou inspiração de políticas públicas de viés confessional. Ela se converte, cada vez mais, em justificativa para atos políticos, legitima o uso do erário em favor de igrejas, e sustenta regimes especiais de renúncia fiscal de renda a líderes religiosos. Muitas dessas práticas, apresentadas como garantias da liberdade de culto, funcionam na prática como folhas de parreira para atividades que não são estritamente religiosas — ampliando o poder de estruturas que misturam fé, política e negócios.

Assim, o “deus político” não só divide comunidades e distorce o debate democrático, como também captura recursos do Estado e subverte a laicidade constitucional. O alerta de Lilla permanece atual: o “deus natimorto” não desapareceu; no Brasil, ele ressuscitou com vigor, vestido de roupagem evangélica e legitimado por narrativas político-religiosas que aprofundam fissuras, corroem a neutralidade republicana e transformam a democracia em refém de interesses travestidos de fé.

 

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