PENSAMENTO PLURAL O Evangelho nas Fronteiras: uma meditação cristã sobre os migrantes, por Palmarí de Lucena

O texto de Palmarí reflete sobre o dever cristão diante da crise migratória, à luz do Evangelho: “era estrangeiro e me acolhestes.” Inspirado pela recente assembleia dos bispos norte-americanos, propõe uma visão em que a fé ultrapassa fronteiras políticas, lembrando que a hospitalidade é a essência do cristianismo. Defende que a Igreja deve unir prudência e misericórdia, pois leis sem compaixão são estéreis, e cada migrante, em sua travessia, é um espelho vivo do próprio Cristo peregrino. Confira íntegra…

Há passagens do Evangelho que parecem escritas para os dias de hoje. “Era estrangeiro, e me acolhestes.” Nenhuma outra frase tão breve contém tamanha força moral. É nela que repousa o coração da doutrina cristã — a certeza de que o amor não é um sentimento, mas um ato de reconhecimento: o rosto do outro é o próprio rosto de Cristo.

A Igreja Católica, em meio às tormentas políticas e às paixões ideológicas, é chamada novamente a recordar o essencial: a fé não se mede pelo fervor das palavras, mas pela coragem de abrir a porta. Diante do drama dos migrantes — famílias desfeitas, crianças sem pátria, homens e mulheres reduzidos a números em estatísticas — o Evangelho não permite neutralidade. O silêncio, nesse caso, é cumplicidade.

A recente assembleia dos bispos dos Estados Unidos, em Baltimore, não foi apenas um encontro administrativo. Foi, antes, uma convocação à consciência. Os prelados reconheceram que a fronteira deixou de ser apenas uma linha geográfica: tornou-se uma ferida espiritual. Quando se ergue um muro para deter os pobres, ergue-se também um muro contra o Evangelho. O arcebispo Paul S. Coakley, novo presidente da conferência episcopal, e o bispo Daniel E. Flores, vice, falaram da necessidade de unir caridade e prudência — sem reduzir a fé a slogans, nem o amor ao sentimentalismo.

A Igreja, lembraram, não nega a legitimidade das leis e da segurança; mas recorda que a lei, sem misericórdia, é fria, e a segurança, sem compaixão, é idolatria do medo. A hospitalidade, ensinada por Cristo, não é ingenuidade — é sabedoria espiritual. É compreender que quem acolhe o estrangeiro acolhe o próprio Deus, e que cada exilado é um sacramento da presença divina no mundo.

Nas palavras de Leão XIV, “as fronteiras do mundo são os limites do amor de Deus”. A cada época, o cristianismo é posto à prova — não pela heresia dos livros, mas pela indiferença dos corações. O século XXI será lembrado, talvez, por sua tecnologia e seus muros. Mas o que o juízo da história perguntará à Igreja é se ela foi abrigo.

As Escrituras estão cheias de migrações: Abraão, o peregrino; Moisés, o fugitivo; Maria e José, os exilados do Egito; Paulo, o viajante incansável. O próprio Cristo não teve onde reclinar a cabeça. O caminho da salvação sempre foi um caminho de deslocamentos. E é por isso que o cristão, ao contemplar o migrante, não vê um estranho — vê um irmão em trânsito, alguém que carrega em si a marca do mesmo Deus que nos criou livres.

Hoje, quando o medo se disfarça de prudência e a indiferença se veste de razão de Estado, a Igreja precisa relembrar o mundo de que a fé é inseparável da ternura. Não há evangelização sem empatia. Não há Eucaristia sem partilha. O altar e a fronteira são dois lugares onde Cristo se manifesta — um no pão partido, outro na vida partida dos que atravessam desertos e mares em busca de refúgio.

O cristianismo nasceu nas estradas, entre forasteiros, perseguidos e sonhadores. O destino da Igreja não é proteger-se, mas proteger. Sua força está no gesto humilde de quem estende a mão, não no cálculo frio de quem mede fronteiras.

Quando, um dia, nos for perguntado o que fizemos com os que batiam à nossa porta, não nos será cobrada a perfeição das doutrinas, mas a pureza do acolhimento. E então compreenderemos que todo estrangeiro é, na verdade, um mensageiro de Deus — alguém que vem nos lembrar que a pátria verdadeira não é uma terra, mas um coração capaz de amar sem fronteiras.

 

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