PENSAMENTO PLURAL O fio da confiança: a crise que abala as democracias nos EUA e no Brasil, por Palmarí de Lucena
Em sua crônica, o escritor Palmarí de Lucena reflete como a confiança, essencial às democracias, está em crise nos EUA e no Brasil. “Nos EUA, a fé interpessoal e institucional caiu drasticamente, agravando polarizações e ataques às normas democráticas. No Brasil, a crise reflete desigualdades e divisões políticas. Reconstruir a confiança demanda diálogo, reformas e líderes comprometidos. Sem isso, o futuro democrático permanece ameaçado”, postula. Confira íntegra.
O fio tênue da confiança, outrora sólido, hoje se desfaz entre os americanos, ameaçando os alicerces da democracia como uma rachadura que cresce silenciosamente. Essa desconfiança, considerada por muitos inevitável, reflete décadas de erosão — um processo que transcende fronteiras e reflete desafios também presentes no Brasil.
Nos Estados Unidos, a confiança colapsou e tornou-se parte estrutural de sua crise política e social. Há 50 anos, quase metade dos americanos acreditava na confiabilidade alheia; hoje, menos de 30% compartilham dessa crença. Entre jovens, mais de 70% veem o próximo como egoísta ou oportunista. Paralelamente, a fé nas instituições despencou: em 1964, 77% confiavam no governo federal; hoje, apenas 22%. Nenhuma grande instituição, do Congresso à Suprema Corte, escapa dessa erosão.
Essa desconfiança gera um ciclo vicioso: a política se reduz a trincheiras de medo e divisão. Em 2020, 90% dos eleitores acreditavam que a vitória adversária seria desastrosa. A polarização extrema não só aprofunda conflitos como também normaliza ataques às normas democráticas, corroendo o contrato social que deveria unir cidadãos.
No Brasil, o contexto difere, mas a crise de confiança é igualmente alarmante. Ela afeta tanto relações interpessoais quanto a fé nas instituições. Pesquisas revelam baixos níveis de confiança no Congresso, nos partidos e no Judiciário. A polarização política transforma adversários em inimigos existenciais, alimentando narrativas de ódio, teorias conspiratórias e deslegitimação democrática, perpetuando um ciclo de desconfiança.
Como nos EUA, a política brasileira tornou-se um jogo de soma zero: vencer a qualquer custo importa mais que construir consensos. Essa dinâmica paralisa o país, sufocando as demandas sociais e bloqueando reformas cruciais. Sem confiança, a democracia se torna inviável. Alternância de poder é vista como ameaça, instituições perdem legitimidade e até decisões básicas para governança são deslegitimadas.
Reconstruir a confiança em sociedades divididas é um desafio árduo, mas possível. O primeiro passo é resgatar a virtude cívica — a disposição para dialogar com respeito às diferenças. No Brasil, educação cívica e programas comunitários podem ajudar. Nos EUA, propostas como serviço nacional universal buscam reforçar o tecido social.
Além disso, reformas estruturais são cruciais para restaurar laços sociais e a legitimidade institucional. No Brasil, é imperativo enfrentar desigualdades e modernizar o sistema político. As instituições devem não apenas ser legítimas, mas percebidas como tais. Por fim, rejeitar narrativas de ódio e desinformação é vital. Líderes comprometidos com a revitalização democrática devem priorizar o bem coletivo. Apenas um esforço conjunto pode restaurar os laços que nos unem.
A experiência americana ensina que a desconfiança pode crescer como uma rachadura, mas a confiança também pode ser contagiante. Reconstruí-la exige paciência e visão de longo prazo. O futuro das democracias nos EUA e no Brasil dependerá de nossa habilidade de fazer da confiança o alicerce de nossa convivência. Afinal, confiar é mais que um ato de esperança — é a essência da sobrevivência democrática.
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