Em sua análise, a escritora Ângela Bezerra aborda um dos poemas mais notáveis de Augusto dos Anjos que, merecidamente, considera como “um dos mais destacados sonetos” do poeta. E ainda: “O Lamento das Coisas é uma configuração metafórica do subdesenvolvimento, ferida eternamente aberta, realidade onde a natureza, especialmente a humana, se consome na fatalidade de não ser.” Confira íntegra…
Escrito em 1914, é um dos mais destacados sonetos de Augusto dos Anjos. Pela temática atemporal, pelo enfoque único, pela estrutura perfeita, é um poema eterno que os séculos hão de repetir, como repetem os sempre atuais camonianos sobre as mudanças da Fortuna e os enganos do Amor.
Em O Lamento das Coisas, desenvolve-se o tema do desperdício das potencialidades, expondo-se a dor do que pode ser e não é, permanecendo em estado rudimentar. Daí a tristeza do eu lírico, na constatação do tempo que passa inutilmente, enquanto as coisas não atingem a dimensão própria.
O poema é elaborado a partir da percepção auditiva. De início, há um personagem “Triste, a escutar, pancada por pancada, / A sucessividade dos segundos”. Essa passagem do tempo é perceptível não apenas pela revelação confessional, mas também no ritmo criado pela repetição intencional de sons oclusivos e sibilantes, como uma marcação a reproduzir cada fragmento do tempo que se esvai.
Tal acuidade auditiva permite que esse personagem também possa ouvir os “sons subterrâneos do orbe oriundos”. Através da expressão sonora do sofrimento identifica-se cada coisa selecionada para a composição do poema: “O choro da Energia”; “a dor da Força”; “o cantochão dos dínamos”; “o soluço da forma, da transcendência e da luz”; tudo sintetizado pelo “subconsciente ai formidando da Natureza, chorando.”
Percebe-se um maior esforço construtivo na caracterização do estado de letargia das coisas que não atingem a concretização de sua essência: “a Energia abandonada”; “a Força desaproveitada”; “os dínamos jazem na estática do Nada”; “a forma ainda imprecisa”; “a transcendência que se não realiza”; “a luz que não chegou a ser lampejo”; “em suma, a Natureza que parou no rudimentarismo do Desejo.”
A síntese do conteúdo desenvolvido ao longo do poema é programaticamente anunciada pela expressão adverbial “em suma”, no último terceto. Todas as coisas se resumem na Natureza e todos os lamentos se condensam no “subconsciente ai formidando”, ou seja, no gemido triste, doloroso e amedrontador, vindo das entranhas da terra e imaginariamente captado pelo eu-lírico.
O Lamento das Coisas é uma configuração metafórica do subdesenvolvimento, ferida eternamente aberta, realidade onde a natureza, especialmente a humana, se consome na fatalidade de não ser. Tragédia que “as sopas populares não remedeiam”, conforme ensina a insofismável reflexão de Exupéry.
Este soneto magnífico tem sofrido historicamente com a persistência de um erro gráfico ou de interpretação, que transforma o substantivo ai no advérbio aí e altera substancialmente o último terceto, a conclusão do poema. Felizmente, as mais confiáveis edições já o corrigiram.
O LAMENTO DAS COISAS
(Augusto dos Anjos)
Triste, a escutar, pancada por pancada,
A sucessividade dos segundos,
Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos,
O choro da energia abandonada!
É a dor da Força desaproveitada,
– O cantochão dos dínamos proofundos,
Que, podendo mover milhões de mundos,
Jazem ainda na estática do Nada!
É o soluço da forma ainda imprecisa…
Da transcendência que não se realiza…
Da luz que não chegou a ser lampejo…
E é em suma, o subconsciente ai formidando
Da natureza que parou, chorando,
No rudementarismo do Desejo!