Em sua crônica de viagem, o escritor Palmarí de Lucena narra sobre a Colina das Dainas, em Sigulda, o monumento às canções populares ergue-se entre pinheiros e colinas do Vale do Gauja como partitura de pedra, na Letônia. Cada inscrição evoca séculos de resistência, lembrando que o canto preservou a língua letona e uniu povos. “Da memória das dainas à Cadeia Báltica, quando milhões deram as mãos em 1989, o visitante descobre que a música é pátria, ponte e liberdade”, pontua. Confira íntegra…
Ao chegar ao Monumento às Canções Populares em Sigulda, na chamada Colina das Dainas (Dainu Kalns), tive a impressão de estar diante de uma partitura de pedra. O conjunto escultórico, erguido pelo artista Folkvar Zariņš, repousa no coração do Vale do Gauja, cercado por colinas verdejantes e pelo silêncio profundo das florestas. Ali, entre pinheiros que se erguem como guardiões e o sopro do vento que percorre o vale, a paisagem parece dialogar com a grandiosidade das inscrições gravadas nas pedras. Cada símbolo, cada verso parecia sussurrar séculos de resistência.
As dainas, canções de quatro versos que atravessaram séculos, foram a argamassa invisível que manteve vivo o idioma. Enquanto escolas e administrações impunham línguas alheias, o povo guardava sua identidade no canto. Era nas aldeias, ao redor das lareiras, nos campos de colheita e nas festas de solstício que a língua era lapidada, como se fosse pedra preciosa contra o esquecimento.
Diante das pedras gravadas em Sigulda, não pude deixar de recordar um outro monumento — invisível, mas eterno — erguido pelas próprias vozes humanas. Em 23 de agosto de 1989, cerca de dois milhões de pessoas uniram as mãos em uma linha ininterrupta de quase 600 quilômetros, atravessando os três países bálticos, de Tallinn a Vilnius, passando por Riga. Chamaram-na de Cadeia Báltica.
Não havia bandeiras de guerra, apenas canções entoadas em suas línguas maternas, ecoando como oração coletiva. O canto, que séculos antes servira para preservar a identidade cultural contra o esquecimento imposto por invasores, tornou-se ali o cimento invisível de uma resistência pacífica. Cada verso entoado na cadeia humana era mais do que música: era declaração de pertença, era promessa de liberdade. Naquele gesto simples — segurar a mão do vizinho e cantar a mesma canção — Letônia, Lituânia e Estônia transformaram fragilidade em força. Mostraram ao mundo que um povo pode se libertar não apenas pelo confronto, mas também pelo canto, pela cultura e pela fé em sua própria voz.
O monumento de Sigulda celebra essa vitória silenciosa: o esforço de transformar um patrimônio oral em herança perene, não só preservando, mas também modernizando o idioma. Hoje, a Letônia investe em centros de pesquisa linguística, em festivais de canto que unem tradição e inovação, e em programas escolares que fazem da língua nativa o coração da vida cultural. Não se trata de nostalgia: é afirmação. É o reconhecimento de que, sem a língua e as canções, não haveria pátria.
Enquanto tocava as inscrições frias da pedra, pensei na coragem desse povo que nunca desistiu de falar na própria voz. A modernização da língua não é um rompimento com o passado, mas uma ponte: une os versos ancestrais das dainas ao vocabulário do século XXI. É como se o monumento dissesse: “Continuem a cantar, pois é no canto que a liberdade encontra morada.”
No fim, compreende-se que a música tem um poder que nenhuma arma alcança: ela une vozes, reconcilia diferenças e cria pertencimento. O canto é mais do que arte — é um instrumento de comunicação e preservação da cultura nacional, capaz de atravessar séculos de dominação e ainda permanecer intacto. Por isso, cabe aos governos reconhecer e apoiar os corais, as danças folclóricas e as tradições musicais não apenas como entretenimento, mas como instrumentos de educação, cidadania e formação de unidade e identidade nacional.
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