PENSAMENTO PLURAL O Papado nunca mais será o mesmo, por Palmarí de Lucena

Em sua crônica, o escritor Palmarí de Lucena, observa como Francisco reinventou o papado com gestos simples, palavras diretas e fé enraizada na compaixão. “Ao visitar o Brasil e confiar à Nossa Senhora Aparecida os rumos de seu pontificado, aproximou Roma do povo”, pontua. Morre o papa, mas permanece a herança de um líder que preferiu o diálogo à distância e deixou a Igreja mais humana, acessível — e inquieta. Confira íntegra...

A morte de um papa sempre impõe silêncio. Mas, no caso de Francisco, o silêncio parece conter ecos de conversas inacabadas. Aos 88 anos, ele encerra não apenas um ciclo de liderança, mas um modo novo — e profundamente humano — de exercer o papado.

Francisco não governou apenas com documentos e rituais. Ele falou. E falou muito. Não com solenidade, mas com franqueza, como quem prefere a dúvida à omissão. Seus encontros com jornalistas, suas entrevistas e até os comentários casuais em viagens deram ao mundo um pontífice que não temia o improviso, mesmo sabendo que isso poderia causar desconforto. Ele parecia acreditar que é melhor provocar reflexão do que sustentar um muro de certezas inquestionáveis.

Essa escolha teve consequências. Francisco desorganizou as prateleiras da Igreja. Não mudou dogmas centrais, mas tocou em temas sensíveis com palavras que abriam espaço para diferentes interpretações. Suas posições sobre questões sociais, ambientais e familiares não vieram como decretos, mas como convites à escuta — e, às vezes, ao espanto.

O Brasil teve lugar especial em seu pontificado. Foi aqui que ele realizou sua primeira grande viagem internacional, durante a Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro, em 2013. E foi ali, aos pés da Padroeira do Brasil, que ele revelou um traço essencial de sua fé: a devoção a Nossa Senhora Aparecida. Na Basílica, emocionado, pediu proteção e conselhos à Mãe de todos. Voltaria a mencioná-la em diversas ocasiões, chamando-a de “mulher do povo, negra e pequena, mas poderosa”. Esse gesto ecoou em milhões de brasileiros que viram, naquele papa de gestos simples, alguém que entendia suas dores e esperanças.

Mesmo assim, sua postura não foi isenta de críticas. Muitos esperavam mais clareza, outros cobravam mais firmeza. Houve quem o visse como corajoso e quem o julgasse ambíguo. Houve quem o aplaudisse por abrir janelas e quem lamentasse o vento que entrou. Mas ninguém pôde ignorá-lo.

Francisco também deixou marcas no modo como o papado se relaciona com o mundo. Ao abandonar a formalidade absoluta e se mostrar como um homem em diálogo com o tempo presente, ele aproximou o Vaticano do cotidiano das pessoas. A figura do papa, antes envolta em distância, ganhou gestos simples, perguntas honestas, silêncios elocuentes.

O sucessor poderá seguir por caminhos diferentes. Mas não escapará da comparação. O microfone já não pode ser desligado. As perguntas continuarão sendo feitas. E a expectativa por um papa que responda com o coração — mesmo quando hesita — será parte do legado de Francisco.

Ele se despede, mas a imagem que construiu do papado permanece. Uma imagem mais humana, mais acessível, mais próxima. Talvez menos segura. Mas, sem dúvida, mais viva.

 

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