PENSAMENTO PLURAL O Parlamento dos Rinocerontes, por Palmarí de Lucena

Inspirada no teatro do absurdo de Eugène Ionesco, a crônica do escritor Palmarí de Lucena retrata o Congresso brasileiro como um palco onde o grotesco se confunde com a rotina. A “PEC da Anistia”, o fundo partidário e a blindagem parlamentar surgem como atos de uma peça em que todos se transformam em rinocerontes — criaturas que rugem discursos e aplaudem a si mesmas, enquanto o povo, exausto, confunde barulho com representação. Confira íntegra…

Entre a anistia e a blindagem, o teatro do poder avança rumo ao absurdo — onde o riso já não é libertação, mas anestesia.

Há momentos em que a realidade parece escrita por Eugène Ionesco. O Congresso brasileiro, em seus dias mais inspirados, seria o cenário ideal para uma remontagem tropical de O Rinoceronte. Só que, aqui, o grotesco não é alegoria: é rotina. E o riso, que deveria denunciar, tornou-se cumplicidade.

Nas últimas semanas, a chamada PEC da Anistia — apresentada como gesto de “autoproteção institucional” — avança com o mesmo enredo de sempre: perdoar partidos por irregularidades no uso de fundos públicos, ampliar o escudo contra punições e consolidar o império das emendas. A cada sessão, o absurdo se torna mais sofisticado — e, paradoxalmente, mais banal.

O espetáculo começa com a declamação da moral. Um parlamentar ergue a voz:

“Defendemos a democracia!”
Aplausos. Em seguida, propõe uma emenda para reduzir a transparência. Silêncio. E o público — o eleitor —, cansado, aplaude por reflexo. É o ponto em que o teatro de Ionesco e a política brasileira se confundem: quando o diálogo perde sentido, e o automatismo toma o lugar da razão.

Enquanto isso, o fundo partidário passeia pelo plenário como um personagem satisfeito, distribuindo recursos com a elegância de quem nunca precisou prestar contas. O dinheiro público, nessa dramaturgia, não é verba — é personagem principal. A política tornou-se uma peça autofinanciada, encenada por quem também a escreve, dirige e crítica do camarote.

A blindagem parlamentar, por sua vez, é a cenografia invisível que sustenta o palco. Nela, a lógica se dissolve: quanto maior o escândalo, mais robusto o argumento em defesa da “autonomia”. É a retórica do espelho — o crime é do sistema, e o sistema é de todos, logo não há culpados. Como em A Cantora Careca, todos falam, mas ninguém se escuta; todos discursam, mas nada é dito.

E quando alguém ousa lembrar o óbvio — que o dinheiro é público, que a política é serviço, que o mandato é representação —, o plenário reage com desdém. O personagem lúcido é sempre o mais ridicularizado, o mais solitário, o último homem não transformado em rinoceronte.

O absurdo ionesquiano ganha, então, contornos institucionais. A farsa não está no que se faz, mas no modo como se justifica. É a racionalidade da irracionalidade: o verbo “proteger” substitui o verbo “servir”, e o ato político se converte em autopreservação.

No fim, o país assiste ao espetáculo com uma mistura de tédio e espanto. O plenário aplaude a si mesmo; o povo paga o ingresso. E a cada nova sessão, a fronteira entre tragédia e comédia se apaga.

Ionesco, se aqui estivesse, escreveria nas anotações de bastidor:

“O teatro do absurdo é mais perigoso quando se apresenta como democracia.”

E talvez concluísse, com seu humor sombrio, que o problema não é termos virado rinocerontes — é termos aprendido a mugir com elegância.

 

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