
Inspirado no livro The Prize, o texto de Palmarí de Lucena analisa o papel do petróleo na formação do Brasil moderno, destacando a Petrobras como símbolo de soberania e, ao mesmo tempo, foco de captura política e ineficiências recorrentes. A crônica relaciona o pré-sal às antigas ilusões desenvolvimentistas, aborda tensões históricas entre os Estados Unidos e países produtores da América Latina e conclui que recursos naturais não substituem instituições sólidas. O desafio brasileiro é tratar energia como política de Estado, não como instrumento ideológico. Confira íntegra...
Poucos livros ajudam tanto a compreender o Brasil contemporâneo quanto The Prize, de Daniel Yergin — ainda que não trate diretamente do país. Ao narrar a história do petróleo como força organizadora da política global, o autor oferece uma lente potente para interpretar não apenas as guerras do século XX, mas também as escolhas estratégicas que ainda condicionam economias inteiras. Entre elas, a brasileira.
Desde a criação da Petrobras, em 1953, o Brasil inscreveu o petróleo no centro de sua ideia de soberania. A campanha “O petróleo é nosso” não foi somente uma disputa técnica ou empresarial: foi uma narrativa identitária. Ao longo das décadas, o setor passou a ser tratado como ativo simbólico e político, mais do que como indústria sujeita a critérios de eficiência e governança.
O livro de Yergin mostra que esse tipo de confusão nunca foi exclusiva do Brasil. Em todo o mundo, petróleo e poder caminharam lado a lado. A diferença é que aqui a empresa estatal tornou-se, muitas vezes, instrumento de política econômica conjuntural, braço informal de projetos eleitorais e âncora de subsídios mal calculados. A história da Petrobras carrega, com igual peso, capítulos de excelência técnica e episódios de captura política.
O ciclo do pré-sal reforçou essa tensão. Ao ser descoberto, prometia não apenas riqueza energética, mas redenção social. Alimentou ilusões de que reservas subterrâneas resolveriam carências estruturais: educação falha, infraestrutura precária, Estado inchado. Como alertaria The Prize, petróleo não corrige instituições; quando muito, as testa.
Em momentos distintos, o país oscilou entre duas tentações: tratar a Petrobras como caixa do Tesouro e tratá-la como símbolo ideológico. Ambas se revelaram disfuncionais. Quando usada como instrumento de controle artificial de preços, a empresa acumulou perdas bilionárias. Quando transformada em estandarte político, passou a ser blindada contra críticas e reformas necessárias.
O resultado foi conhecido. A Operação Lava Jato, independentemente dos seus excessos e controvérsias, revelou um sistema de captura que operava há anos: contratos inflados, cadeias de propina e loteamento de cargos estratégicos. O petróleo, mais uma vez, aparecia não como motor do progresso, mas como acelerador da degradação institucional.
Mas a história latino-americana do petróleo não se explica apenas dentro das fronteiras nacionais. The Prize também ilumina as tensões persistentes entre os Estados Unidos e os países produtores da região. Durante décadas, Washington enxergou o fornecimento energético continental como extensão de sua própria segurança nacional. Intervenções políticas diretas, apoio tácito a governos autoritários e pressões diplomáticas sobre políticas de nacionalização estiveram frequentemente associadas à proteção de interesses energéticos.
Casos como México, Venezuela e, em menor medida, Brasil mostram como o controle do petróleo redefiniu relações bilaterais. O recurso serviu tanto como instrumento de barganha internacional quanto como pretexto para ingerências. O discurso da estabilidade conviveu, não raro, com práticas que desestabilizaram democracias frágeis em nome do acesso a reservas estratégicas.
Nesse contexto, a noção de “soberania energética” ganhou na América Latina um sentido agudo: não apenas econômico, mas político. Nacionalizar reservas tornou-se gesto de afirmação — e, ao mesmo tempo, gatilho para conflitos externos. The Prize lembra que a geopolítica do petróleo raramente respeitou fronteiras jurídicas quando interesses maiores estavam em jogo.
Hoje, o Brasil discute transição energética enquanto ainda tenta domesticar seu passado fóssil. A Petrobras busca reposicionar-se como empresa — e não como instrumento político. Ao mesmo tempo, o governo oscila entre compromissos ambientais e impulsos desenvolvimentistas mal definidos. A ambiguidade mina a credibilidade externa e dificulta o planejamento interno.
O país está diante de uma escolha que The Prize ensinaria a tratar com seriedade: energia é questão de Estado, não de governo. Não pode ser conduzida ao sabor das eleições nem convertida em palanque ideológico. Tampouco deve ser tratada como tabu.
O petróleo continuará a ter papel relevante no Brasil por muitos anos. Mas insistir em vê-lo como solução para problemas que são, na raiz, institucionais, é prolongar ilusões custosas. Yergin nos lembra, em cada capítulo, que países não fracassam por falta de recursos. Fracassam por transformá-los em álibi para não reformar o que realmente importa.
O Brasil tem petróleo. O que ainda busca, com dificuldade, é maturidade política para lidar com ele.
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