PENSAMENTO PLURAL O Sul, o petróleo e o poder, por Palmarí de Lucena

O texto do escritor Palmarí de Lucena analisa a persistência do petróleo como eixo de poder no século XXI, destacando sua influência nas relações entre os Estados Unidos e o Hemisfério Sul. A política de segurança energética, associada à retórica da guerra contra os “narcoterroristas”, é apresentada como instrumento de controle das zonas produtoras. Apesar da transição verde, o desafio continua: transformar energia em soberania e desenvolvimento, e não em dependência e submissão. Confira íntegra...

O petróleo sempre foi o espelho das ambições humanas — e das nossas contradições. Em The Prize: The Epic Quest for Oil, Money, and Power, Daniel Yergin mostrou como o ouro negro moldou o século XX: combustível das guerras, alma da economia e medida do poder das nações. O tempo passou, mas o enredo persiste. Em 2025, o petróleo ainda é o prêmio que move o jogo geopolítico, sobretudo no Hemisfério Sul, onde abundância costuma rimar com dependência.

Yergin narra a ascensão americana impulsionada pelo petróleo, descrevendo-o como motor oculto da política externa. Hoje, o cenário é outro, mas a lógica é a mesma. A transição energética tornou-se o novo nome da corrida por supremacia. A Europa tenta se libertar do gás russo; a China monopoliza as baterias; e os Estados Unidos, sob Donald Trump, voltam a mirar o sul com o olhar antigo de quem vê petróleo e enxerga território.

O discurso mudou, o instinto não. A diplomacia americana, agora travestida de “segurança energética”, reedita a Doutrina Monroe com outras ferramentas: sanções econômicas, pressão sobre governos e manipulação de contratos. A Guiana, antes irrelevante, tornou-se o novo eldorado do Atlântico, enquanto a Venezuela resiste sob as cinzas de uma bonança maldita. Trump não fala em invasões, mas sua retórica de “energia livre dos socialistas” ecoa a antiga ideia de civilização imposta pela força.

O Hemisfério Sul, por sua vez, permanece dividido entre esperança e desencanto. O México segue prisioneiro da corrupção estrutural da PEMEX; o Brasil tenta curar as feridas deixadas pela Lava Jato e pelos anos em que a Petrobras foi transformada em caixa de partido; e a Venezuela continua símbolo da maldição do petróleo — rica em reservas, pobre em futuro. O que Yergin chamou de “maldição da abundância” ainda domina: países que produzem muito e inovam pouco, que vendem energia e compram estabilidade.

As guerras pelo petróleo tornaram-se menos visíveis, mas não menos brutais. As invasões foram substituídas por sanções, os canhões por algoritmos financeiros. O campo de batalha é o câmbio; o inimigo, a dependência. A retórica da transição ecológica soa nobre, mas serve também para reposicionar o poder global: o Norte dita a agenda verde enquanto o Sul continua a cavar.

Na retórica de segurança global, o governo Trump levou a militarização ainda mais longe. Ao rotular traficantes como “narcoterroristas”, buscou transformar o combate às drogas em extensão da política de guerra. Essa estratégia permitia evadir as restrições das Convenções de Genebra, tratar crimes comuns como conflitos armados e justificar ações extraterritoriais sem as garantias do devido processo. Ainda assim, o Artigo Comum 3 impõe limites mínimos de humanidade e proteção aos detidos — lembrete de que até na guerra há fronteiras éticas.

Importa ligar, com clareza, a retórica da “guerra contra os narcoterroristas” à ambição mais ampla de controlar as zonas produtoras de petróleo na América do Sul. Ao transformar traficantes em inimigos da segurança nacional, abre-se caminho para a militarização de territórios ricos em recursos. Essa operação simbólica não é neutra: legitima incursões, facilita acordos favoráveis a empresas estrangeiras e cria um clima de exceção em que direitos civis e o devido processo ficam em segundo plano.

O verdadeiro “prêmio”, agora, não está no subsolo, mas na capacidade das nações de transformar energia em liberdade — e não em submissão. A América Latina corre o risco de repetir seu papel histórico: ser campo de experimentação e fornecedora de matérias-primas de um sistema global que raramente devolve justiça.

Yergin escreveu que o petróleo moldou o século XX. Mas é possível que também molde o XXI, com disfarces mais sutis. Sob a sombra de Trump e a reedição de uma política que confunde segurança com dominação, o ouro negro volta a brilhar com a mesma ambiguidade de sempre — fonte de luz para uns, mancha eterna para outros. O desafio, agora, é romper a lógica da dependência e construir um futuro em que a energia sirva à humanidade — e não o contrário.

 

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