PENSAMENTO PLURAL O Supremo e a responsabilidade de respeitar o voto majoritário, por Palmarí de Lucena

O Supremo Tribunal Federal não pode ser tratado como um Fla-Flu, onde torcidas tentam mudar o resultado no grito, afirma o escritor Palmarí de Lucena em seu comentário. Divergências são parte legítima da democracia: votos dissidentes, como os de ministros que já contrariam governos — inclusive em decisões envolvendo Lula —, não anulam o veredito da maioria. “O que sustenta a Justiça é o respeito às regras institucionais. Sem isso, abre-se espaço para que o arbítrio suplante a lei”, complementa. Confira íntegra…

O sistema de justiça é a última trincheira de qualquer democracia. Nos Estados Unidos, diante de um presidente disposto a esticar os limites constitucionais e de um Congresso dominado por seus aliados, coube ao Judiciário conter excessos de Donald Trump. Centenas de ações foram ajuizadas, e mais de duzentas ordens judiciais suspenderam medidas arbitrárias. Mesmo assim, o risco persiste: a Suprema Corte, com maioria conservadora, decidiu em 2024, por seis votos a três, que presidentes gozam de imunidade ampla em atos oficiais. O voto dissidente dos três ministros liberais não anulou o resultado — apenas registrou uma divergência legítima.

A lição é clara e deveria ecoar também no Brasil. Um julgamento no Supremo Tribunal Federal não pode ser tratado como o resultado de um Fla-Flu, em que torcidas organizadas tentam inverter o placar no grito, no empurra-empurra ou no tumulto das ruas. O voto em separado de um ministro, como o do ministro Luiz Fux em certas ocasiões, não é motivo para desacreditar o processo inteiro. O que sustenta a Justiça é a aceitação do voto majoritário, fruto de um tribunal colegiado que delibera em público, à luz da Constituição.

No entanto, parte da direita brasileira insiste em replicar a cartilha do trumpismo. Familiares e aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro, inclusive em solo americano, alimentam a narrativa de que decisões judiciais desfavoráveis seriam perseguições políticas. Ao transplantar para cá a lógica da polarização radicalizada, tentam reduzir a Corte a um ringue de torcidas, como se fosse possível reverter o resultado no braço. A esse cenário somam-se sinais de interferência externa, quando vozes do governo americano se pronunciam sobre processos que envolvem os responsáveis pelos ataques ao Estado Democrático de Direito no Brasil, gerando constrangimentos institucionais e testando a solidez da nossa soberania.

É fundamental separar crítica legítima de deslegitimação perigosa. O dissenso é constitutivo da Justiça e não raro se voltou contra o próprio governo. No passado, ministros do STF se dividiram em julgamentos que afetavam diretamente medidas de presidentes, inclusive Lula, como ocorreu em discussões sobre a validade da lei de imprensa e sobre a política de células-tronco, quando votos contrários surgiram sem que isso levasse a contestar a autoridade do tribunal. Divergir é parte da democracia; o que não se pode admitir é a tentativa de transformar essas divergências em combustível para desmoralizar instituições.

No Brasil, como nos Estados Unidos, a defesa da democracia não reside em torcidas organizadas, mas na capacidade de aceitar a decisão colegiada, ainda que ela nos desagrade. O respeito ao voto majoritário, temperado pelo reconhecimento do direito à divergência, é o que garante a continuidade do pacto democrático. Romper essa regra de ouro, seja em nome de líderes populistas ou de paixões partidárias, é abrir a porta para que a força e a intimidação substituam a lei — e isso, sim, seria a derrota de todos.

 

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