PENSAMENTO PLURAL O voto como obstáculo: a estratégia global de erosão democrática, por Palmarí de Lucena

A erosão democrática pode ocorrer sem golpes explícitos, por meio da manipulação de regras eleitorais, diz o escritor Palmarí de Lucena. “Hungria, Venezuela e diversos estados dos EUA revelam estratégias semelhantes: dificultar o voto de minorias, redesenhar distritos para favorecer quem está no poder e enfraquecer instituições capazes de fiscalizar eleições”, pontua. Orbán age com legalismo estratégico, Maduro com coerção aberta e republicanos com engenharia cartográfica. Em todos os casos, o voto deixa de decidir e passa a ser administrado por quem teme perder. Confira íntegra...

A manipulação das regras eleitorais tornou-se uma das formas mais sofisticadas — e menos visíveis — de enfraquecer democracias contemporâneas. Hoje, não é preciso abolir eleições nem fechar parlamentos para reduzir o poder do voto. Basta ajustar mapas eleitorais, criar barreiras administrativas, dificultar a participação de grupos específicos e redesenhar as condições de competição. A aparência democrática permanece, mas sua essência pode ser cuidadosamente esvaziada. É nesse terreno que a Hungria de Viktor Orbán, a Venezuela de Nicolás Maduro e diversos estados norte-americanos controlados pelo Partido Republicano revelam surpreendente convergência estratégica.

Orbán aperfeiçoou um modelo de erosão silenciosa, baseado no legalismo aparente. Ele redesenha distritos para diluir o voto urbano, fortalece o voto de minorias étnicas simpáticas ao governo, dificulta a participação de expatriados críticos e enfraquece instituições capazes de fiscalizar o processo eleitoral. Nada disso se faz por decreto autoritário; é a sutileza que garante eficácia. O sistema continua a funcionar, urnas continuam abertas, mas os mecanismos de alternância são cuidadosamente enfraquecidos. A democracia húngara já não decide — apenas ratifica.

Maduro segue caminho mais abrupto. Na Venezuela, a manipulação eleitoral tornou-se ferramenta explícita de sobrevivência do regime. Mudanças repentinas de locais de votação, cassação de partidos, impedimento de candidaturas competitivas, intervenções judiciais e intimidação de eleitores transformaram o processo eleitoral em ritual desprovido de consequência real. Quando a oposição conquistou maioria legislativa, uma assembleia paralela foi criada para anulá-la. Aqui, o voto não é contornado — é neutralizado.

Nos Estados Unidos, setores do Partido Republicano adotam mecanismos mais discretos, porém estruturalmente comparáveis. A restrição do voto de minorias — especialmente negros, latinos e jovens — tornou-se pauta legislativa recorrente em estados como Geórgia, Texas, Carolina do Norte e Wisconsin. As medidas variam: exigência de documentos difíceis de obter, redução de urnas em bairros urbanos, limitação do voto antecipado e regras destinadas a inibir a participação de grupos que tradicionalmente votam no Partido Democrata. A justificativa é sempre a mesma — “segurança eleitoral” —, mas o efeito prático é claro.

A peça central dessa estratégia é o gerrymandering, uma prática que consiste em manipular o desenho dos distritos eleitorais para favorecer um partido. O método opera por duas vias: o packing, que concentra adversários em poucos distritos para “desperdiçar” seus votos, e o cracking, que fragmenta esses mesmos eleitores em diversos distritos para impedir que formem maioria em qualquer deles. Assim, um partido pode conquistar menos votos no total e ainda assim obter mais cadeiras legislativas. Distritos assumem formas improváveis — serpentes, tentáculos, arquipélagos conectados por ruas estreitas — tudo dentro das regras. Não se trata de fraude, mas de engenharia política: vencer antes que o eleitor vote.

A intensidade dos métodos varia entre Venezuela, Hungria e EUA, mas a essência é a mesma: quando a demografia ou a dinâmica política deixam de favorecer determinado projeto, alteram-se as condições de disputa. Maduro recorre à coerção aberta; Orbán, à engenharia institucional; legisladores republicanos, à engenharia cartográfica. Em todos os casos, o adversário não é derrotado nas urnas, mas no próprio desenho do caminho que leva até elas.

O resultado é um modelo de democracia em que eleições continuam ocorrendo, mas sua capacidade de produzir alternância diminui progressivamente. O eleitor participa, mas suas escolhas encontram barreiras erguidas por autoridades que já não aceitam o risco constitutivo da vida democrática: o risco da derrota.

Democracias não colapsam apenas quando deixam de realizar eleições, mas quando as eleições deixam de importar. Quando o voto se transforma em obstáculo — e não mais em fundamento —, abre-se caminho para sistemas que preservam a forma, mas abandonam o espírito. A erosão, nesses casos, não se dá por ruptura, mas por ajustes sucessivos, cada um pequeno demais para gerar reação, todos grandes demais quando somados.

O futuro democrático dependerá não da frequência com que urnas se abrem, mas da integridade das regras que as sustentam. Porque nenhuma democracia sobrevive quando as condições de competição são manipuladas para garantir a vitória de quem teme perder.

 

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