No Brasil, figuras públicas envolvidas em escândalos escapam da Justiça com passaportes diplomáticos, laudos médicos e blindagens regimentais, enquanto o cidadão comum enfrenta penas implacáveis. O texto do escritor Palmarí de Lucena denuncia “essa cultura de impunidade, a lentidão dos Conselhos de Ética e o uso distorcido do foro privilegiado”, alertando para o “enfraquecimento da democracia diante de tamanha desigualdade jurídica”. Confira íntegra…
Quando a Justiça ameaça bater à porta, há quem opte por abrir as asas — não os braços. Ao longo dos últimos anos, o Brasil tem assistido à consolidação de uma prática silenciosa e corrosiva: o êxodo estratégico de políticos e autoridades sob suspeita. Não se trata de um fenômeno isolado, nem exclusivo de um campo ideológico. Trata-se de uma estrutura sistêmica, alimentada por privilégios acumulados e por uma cultura institucional que recompensa o silêncio, protege os seus e abandona a ética ao léxico da retórica.
Para essa elite política e administrativa, a fuga raramente é improvisada. Ela é preparada com método, recursos e, muitas vezes, com dinheiro de origem pública ou de doações que escapam ao escrutínio. O passaporte europeu, o green card, o apartamento em Lisboa ou Miami, o advogado a postos, o laudo médico oportuno — tudo compõe um arsenal que transforma a responsabilização em algo evitável, quando não risível.
A fuga, porém, nem sempre requer o aeroporto. O sistema político nacional oferece alternativas igualmente eficazes. O foro privilegiado, os rituais protelatórios das comissões legislativas, e o regimento interno do Congresso funcionam como escudos formais para retardar ou inviabilizar qualquer tentativa de punição. Conselhos de Ética, por vezes, mais se assemelham a comissões de arquivamento do que a mecanismos de fiscalização republicana. Entre pareceres adiados, votações sem quórum e sessões esvaziadas, a sanção torna-se exceção; a procrastinação, a regra.
No plano discursivo, invocam-se direitos legítimos: a ampla defesa, a presunção de inocência, o devido processo legal. São fundamentos constitucionais indispensáveis. Mas seu uso recorrente como cortina de fumaça para a impunidade não pode ser ignorado. A democracia perde densidade quando garantias legais se tornam escudos exclusivos de quem pode custear a própria blindagem.
Fora do círculo dos protegidos, o cidadão comum assiste. Sem foro, sem retaguarda jurídica de luxo, sem o benefício da dúvida ampliado por laudos, alianças ou palanques. Para ele, a Justiça é veloz, direta, implacável. A prisão preventiva é regra. A espera por julgamento, um purgatório. A desigualdade não se restringe à renda ou à educação: ela se materializa no próprio modo como o Estado exerce — ou poupa — seu poder punitivo.
Recentemente, o episódio do asilo concedido à ex-primeira-dama do Peru reabriu o debate sobre a instrumentalização de mecanismos legais e diplomáticos. O gesto brasileiro seguiu os termos da Convenção de Caracas. Mas o uso da aeronave oficial e o momento político despertaram ruídos. Ao invés de discussão ponderada sobre tratados internacionais e soberania jurídica, instalou-se uma disputa de versões. Os que ontem silenciaram agora vociferam. Os que agora defendem já foram críticos. O tema virou trincheira, e não objeto de escrutínio racional. A incoerência, como tem sido habitual, venceu a sobriedade.
Não se trata de apontar culpados pontuais. Nem de sugerir que a política deva funcionar como uma máquina punitiva. O que está em xeque é a integridade do pacto republicano. Um sistema em que figuras públicas conseguem driblar a Justiça, enquanto a maioria enfrenta o peso do Estado com desproteção absoluta, não é apenas disfuncional. É injusto. E profundamente corrosivo para a confiança democrática.
É necessário — e urgente — repactuar os limites entre imunidade e impunidade. Exigir que os mecanismos de proteção institucional deixem de ser trincheiras de conveniência. Reformar regimentos, agilizar processos nos Conselhos de Ética, fortalecer mecanismos de cooperação internacional para extradição. E, sobretudo, restaurar a ideia de que o poder é — ou deveria ser — sinônimo de responsabilidade, e não de imunidade hereditária.
Democracias não morrem apenas por golpes ou discursos autoritários. Elas se esvaziam, pouco a pouco, quando a lei deixa de ser um denominador comum. Quando o avião vira toga, o foro vira esconderijo e o mandato vira licença para escapar. Se quisermos evitar esse esvaziamento, será preciso mais do que indignação episódica. Será preciso coragem institucional — e compromisso com o princípio mais simples e mais difícil da vida pública: ninguém está acima da lei.
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