
O texto do escritor Palmarí de Lucena analisa a transformação da exceção em método na vida pública brasileira, marcada pela normalização do improviso, do provisório e da urgência permanente. Argumenta que a democracia é celebrada no discurso, mas fragilizada na prática, enquanto a polarização substitui o debate por certezas morais. “A erosão da linguagem pública esvazia conceitos centrais e abre espaço ao arbítrio”, diz. O ensaio defende disciplina cívica, respeito às regras e responsabilidade como fundamentos da democracia. Confira íntegra...
O Brasil vive uma condição pública singular: não se percebe em crise aberta, mas tampouco se reconhece em normalidade. Aos poucos, a exceção deixou de ser instrumento episódico e passou a ocupar o lugar do método. O provisório tornou-se rotina; o urgente, permanente. Vive-se como quem espera — não o colapso nem a solução, mas algo indefinido, sempre adiado.
A democracia é celebrada com entusiasmo retórico, mas praticada com impaciência. Invoca-se a legalidade com frequência, ao mesmo tempo em que se tolera sua suspensão episódica como expediente pragmático. Planejamento é visto como entrave; improviso, como virtude. O esforço contínuo cede espaço à solução rápida, ainda que precária, como se persistência fosse sinônimo de rigidez e não de responsabilidade.
Nesse ambiente, a exceção transforma-se em hábito. Regimes de urgência, flexibilizações fiscais, atalhos jurídicos e soluções provisórias acumulam-se até perder o caráter emergencial e assumir a forma de método. O risco não está na exceção em si, mas na sua repetição. Quando o provisório se perpetua, a norma se esvazia — não por ruptura explícita, mas por desgaste, por costume, por cansaço moral. As democracias raramente adoecem de forma súbita; adoecem por acomodação.
A polarização política agrava esse quadro. O debate público deixou de ser confronto de ideias para tornar-se disputa de certezas morais. A dúvida passou a ser tratada como fraqueza; a reflexão, como hesitação suspeita. O adversário já não é alguém a ser convencido, mas um erro a ser eliminado. Nesse ambiente, o argumento perde espaço para o grito, e a política cede lugar ao ritual identitário.
Talvez o sintoma mais profundo dessa erosão esteja na degradação da linguagem pública. Palavras como “liberdade”, “povo”, “democracia” e “justiça” circulam com intensidade, mas sem densidade. Repetidas à exaustão, perderam precisão e lastro moral. Quando os conceitos se esvaziam, as instituições passam a operar no terreno da ambiguidade — e a ambiguidade prolongada é sempre fértil para o arbítrio.
Não se trata da ausência de soluções espetaculares, mas do excesso de promessas fáceis. Salvadores reaparecem com regularidade, oferecendo atalhos morais, rupturas redentoras e respostas instantâneas. O que falta, porém, é menos sedutor: educação cívica paciente, respeito aos ritos imperfeitos da democracia representativa, contenção do impulso messiânico e rejeição do improviso elevado à condição de virtude nacional.
O atraso brasileiro não reside apenas na escassez material, mas na indulgência cultural com a irresponsabilidade disfarçada de criatividade. Confunde-se flexibilidade com desleixo, agilidade com desprezo pelas regras, urgência com exceção permanente. Nesse ambiente, a liberdade corre o risco de ser tratada como slogan — quando, na verdade, é uma prática cotidiana que exige método, autocontrole e fidelidade à palavra.
O país não está condenado. Mas habituou-se a viver em estado de espera, como quem já não busca a cura, apenas administra a convalescença. Esqueceu, nesse intervalo prolongado, que a democracia não se sustenta por exaltação coletiva, e sim por disciplina cívica.
Porque, no fim, quando a exceção vira regra, a razão deixa de ser critério — e passa a ser ornamento.
Os textos publicados nesta seção “Pensamento Plural” são de responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a opinião do Blog.