PENSAMENTO PLURAL Quando a Fazenda sobe a rampa da Câmara, por Palmarí de Lucena

A crônica do escritor Palmarí de Lucena usa a fábula de Orwell para retratar, com ironia literária, uma audiência imaginária entre os animais da fazenda e a Câmara dos Deputados. Boxer, Benjamin e outros personagens questionam a distância entre discurso e prática, a dissonometria institucional e o uso recorrente da anistia como solução conveniente. Ao revelar contradições normalizadas, o texto sugere que o problema não está nos personagens, mas na lógica que se perpetua — sempre pronta a se justificar. Confira íntegra...

Houve um dia, desses em que o país desperta cansado de suas próprias manobras, em que os animais da velha fazenda de Orwell foram convidados para uma audiência pública na Câmara dos Deputados. Não era um gesto simbólico, tampouco homenagem. Era tentativa — condenada desde o protocolo — de compreender como opera um poder que domina a arte de produzir explicações cada vez mais complexas para justificar resultados cada vez mais modestos.

Os bichos chegaram cedo, convictos de que regras servem para orientar. A Câmara chegou depois, como manda a liturgia de Brasília: assessores primeiro, deputados depois, e por fim a solenidade — essa entidade que aparece sempre que é preciso emprestar gravidade a uma reunião cujo conteúdo ainda não existe.

Sentaram-se frente a frente: de um lado, a simplicidade da granja; do outro, a coreografia institucional da Câmara. Entre eles, uma pauta que, de tão nebulosa, permitia encaixar qualquer assunto, desde que ninguém ousasse exigir precisão.

Boxer, o cavalo que acreditava que trabalhar mais resolveria tudo, abriu a sessão com honestidade desarmada: queria entender por que tantas leis mudam sem mudar o país, e por que regras parecem flutuar conforme o vento político. Recebeu a resposta tranquila de um deputado veterano: a mudança constante seria sinal de maturidade institucional; a complexidade, mãe da clareza. Boxer não entendeu. O deputado sorriu: “Então estamos evoluindo.”

As galinhas vieram a seguir, queixando-se da fome no galinheiro. Receberam de volta não uma solução, mas uma promessa de Frente Parlamentar de Incentivo à Postura Sustentável — Brasília é pródiga em Frentes, Grupos e Comissões que resolvem simbolicamente aquilo que não pretendem resolver materialmente. As galinhas se entreolharam. Na linguagem da Câmara, aquele silêncio chamava-se “encaminhado”.

Benjamin, o burro cético que via na política da fazenda uma obra contínua de ilusões, pediu a palavra. Queria entender a função real daquela Casa. Não a que a Constituição descreve, mas a que o cotidiano revela: uma mistura instável de urgência performática e adiamento estrutural. Um deputado, num raro instante de sinceridade administrativa, explicou: representar o povo exige criar espaços para ouvir o povo; criar espaços exige orçamento; orçamento exige negociação; negociação exige novos espaços. Benjamin suspirou. Ali estava, viva e vibrante, a velha dissonometria brasileira — essa habilidade de transformar um princípio em seu contrário sem que a contradição cause vergonha.

Foi então que Napoleão, o porco que liderara a revolução na fazenda e agora falava como se tivesse cursado vários seminários de governança legislativa, assumiu o microfone. Explicou, com naturalidade acadêmica, que coerência é artigo de luxo; que reformas precisam nascer gigantes para terminar anãs; que promessas nascem pequenas para terminar esquecidas. A verdade, disse ele, deve servir à liderança, e não o contrário. Os deputados assentiram: era uma lógica familiar.

 

Garganta, porta-voz oficial da maleabilidade, anunciou um ousado Plano de Aperfeiçoamento da Coerência, cuja finalidade era transformar contradições em oportunidades discursivas. Concluiu afirmando que a incoerência não é falha, mas método. O auditório se dividiu entre perplexidade e compreensão. Afinal, poucas instituições dominam tão bem essa arte quanto a Câmara.

Em certo momento, surgiu o tema da anistia — essa entidade política que ressuscita ciclicamente sempre que se deseja pacificar conflitos sem enfrentá-los. Boxer arregalou os olhos: na fazenda, anistia sempre fora sinônimo de perdão antecipado das culpas futuras. Um deputado corrigiu com a suavidade de quem domina o léxico parlamentar:
— Não é perdão, é pacificação.
Benjamin, fiel à sua secura moral, replicou:
— Pacificar quem?
Ninguém respondeu.

A audiência terminou como terminam tantas outras na Câmara: com ata protocolar, café que já desistiu de ser quente e a convicção tácita de que nada mudaria. Os bichos deixaram o prédio com a dignidade possível; alguns murmuravam que, na fazenda, ao menos as contradições eram assumidas sem rodeios. Ali, revestiam-se de constitucionalidade, técnica e boa intenção.

Os deputados voltaram aos gabinetes, revisando discursos, negociando votos, ajustando prioridades conforme o vento do dia. Um deles, entrando no elevador, deixou escapar a frase que resumiu o encontro inteiro:

— A história ensina. A gente é que escolhe quando aplicar — e quando pedir anistia.

E assim, entre a granja e o plenário, entre bichos e homens, entre fábula e país, restou a constatação imutável: quando o poder aprende a reproduzir sua própria dissonometria, pouco importa quem segura o martelo — a lógica permanece intocada.

Nota do Escritor – Esta crônica não busca explicar o Brasil, apenas refletir, com a ajuda de Orwell, sobre nossas repetidas dissonâncias entre discurso e prática. Ao trazer os animais para dentro da Câmara, exponho comportamentos — não pessoas — e a tentação nacional de transformar exceções em regra. A literatura não julga: revela. E, ao revelar, nos convida a decidir se continuaremos a fábula ou se finalmente a reescreveremos.

 

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