O artigo do escritor Palmarí de Lucena analisa a transformação da política em espetáculo, onde líderes priorizam performance, slogans e inimigos simbólicos em vez de governar com responsabilidade. Em contextos de crise, essa teatralidade mina instituições, polariza sociedades e enfraquece a democracia. Defende-se a valorização da verdade, da educação cívica e das instituições como antídotos ao populismo encenado que substitui estadistas por personagens. Confira íntegra…
Ao longo da história recente, observa-se um fenômeno recorrente em diferentes partes do mundo: a ascensão de líderes que fazem da política um palco, do cargo público um personagem, e do poder uma narrativa pessoal. Não importa se à direita ou à esquerda, em democracias frágeis ou robustas — a lógica é a mesma. O que se vê é menos o exercício da responsabilidade pública e mais a performance de uma figura que busca, antes de governar, encantar, dividir ou provocar.
Esses líderes compartilham traços comuns: culto à personalidade, desconfiança em relação às instituições democráticas, uso estratégico de inimigos simbólicos e apego à teatralidade como forma de comunicação política. Em vez de apresentar projetos concretos e sustentáveis, oferecem slogans, gestos simbólicos e promessas fáceis. Transformam o embate político em espetáculo contínuo, onde o adversário é tratado como inimigo, a imprensa como ameaça, e a crítica como traição.
Essa forma de atuação costuma emergir em tempos de crise social, econômica ou institucional. A população, cansada de promessas frustradas e elites distantes, se vê seduzida por figuras que falam “como o povo”, que parecem rejeitar o sistema e que prometem romper com tudo o que está aí. No entanto, o antissistema de fachada geralmente leva a uma degradação ainda maior da confiança pública e da estabilidade democrática.
O discurso simplificador é outro ponto em comum: a realidade, por mais complexa que seja, é reduzida a frases de efeito, inimigos externos e teorias conspiratórias. A linguagem se torna agressiva, binária, emocional. O governante deixa de ser um servidor do Estado para se tornar uma entidade moral, uma encarnação do “bem contra o mal”. E, nesse processo, a verdade passa a ser moldada pelo desejo e não pelo fato.
A consequência mais grave dessa teatralização da política é a corrosão das instituições. Regras constitucionais, equilíbrio entre os poderes, respeito ao contraditório e à diversidade de ideias — tudo isso é lentamente colocado em segundo plano em nome de uma pretensa “vontade popular” que o líder afirma personificar. A política vira plebiscitária, emocional, personalista. O resultado, muitas vezes, é o enfraquecimento da imprensa livre, do sistema judiciário e das garantias civis.
Em vários países, essa fórmula já demonstrou seu custo: polarização extrema, descrédito generalizado, estagnação econômica, repressão crescente e o esvaziamento do espaço democrático. Mesmo quando tais governos chegam ao poder por meio do voto, tendem a tensionar — e em alguns casos, a romper — o pacto democrático que os legitimou.
A história oferece exemplos suficientes para demonstrar que a substituição do estadista pelo animador, do gestor pelo polemista, e do projeto pelo improviso pode gerar efeitos duradouros e traumáticos. Democracias consolidadas não são imunes a esse processo. Basta o enfraquecimento da educação cívica, o abandono do debate racional e a proliferação de desinformação para que o espetáculo suplante a política — e para que a plateia aplauda, mesmo enquanto o palco desmorona.
Por isso, é fundamental cultivar a memória histórica, fortalecer instituições, valorizar a verdade factual e compreender que o carisma não substitui a competência, e que a empatia pública não justifica a irresponsabilidade governamental. O futuro democrático depende menos do brilho de uma figura e mais da solidez das estruturas que garantem liberdade, justiça e pluralidade.
Quando o governante se torna personagem e o cidadão vira espectador, a política perde sua essência — e o povo, aos poucos, perde o protagonismo.
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