PENSAMENTO PLURAL Quando a soberania está em jogo, por Palmarí de Lucena

No entender do escritor Palmarí de Lucena, a ameaça de sanções dos EUA contra um ministro do STF afronta diretamente a soberania brasileira e distorce a própria Lei Magnitsky. “Não se trata de proteger indivíduos, mas de defender princípios. A soberania não se terceiriza, não se negocia e não se intimida. É cláusula pétrea da República, e nenhum país tem autoridade sobre nossas instituições”. Confira íntegra…

Existem fronteiras que nenhuma nação tem o direito de atravessar. Não se cruzam com tanques, nem com sanções econômicas, tampouco com ameaças disfarçadas de zelo democrático. A recente declaração do secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, sobre a possível aplicação da Lei Global Magnitsky contra um ministro do Supremo Tribunal Federal do Brasil, não é apenas um gesto inusitado na diplomacia internacional. É, sim, uma afronta direta à soberania brasileira — e, por extensão, um desafio à ordem jurídica que sustenta as relações entre nações livres.

Não se trata de um episódio isolado ou retórica parlamentar de ocasião. Trata-se, sim, de um movimento deliberado, capaz de gerar uma crise diplomática de proporções imprevisíveis. Ao vocalizar, em audiência pública na Câmara americana, que há uma “grande probabilidade” de sanções, Rubio aciona uma engrenagem que não se limita à política. Ela toca os alicerces do próprio direito internacional.

No Brasil, vozes que deveriam defender a integridade das instituições preferem a celebração ruidosa de uma narrativa que, na prática, conspira contra os fundamentos da nossa República. Eduardo Bolsonaro — deputado licenciado, filho de ex-presidente — não escondeu sua satisfação. Chegou a descrever o cenário como uma “pena de morte financeira”, antecipando efeitos que, se aplicados, fariam qualquer cidadão brasileiro refletir sobre o preço de se permitir tamanha interferência externa. E aqui não se trata de defender nomes ou posições, mas de defender princípios — os mesmos que sustentam qualquer nação soberana.

A Lei Global Magnitsky não nasceu para isso. Criada para punir torturadores, violadores de direitos humanos e arquitetos de grandes esquemas de corrupção em regimes autocráticos, sua aplicação contra um ministro de um país democrático não é só um erro jurídico. É uma deturpação grave da finalidade da própria norma. Um desvio que, se concretizado, abriria um precedente tão perigoso quanto corrosivo — não só para o Brasil, mas para o equilíbrio diplomático internacional.

A resposta brasileira foi, como deveria ser, firme, sóbria e altiva. A Comissão Nacional de Estudos Constitucionais deixou claro, em nota contundente, que soberania não se negocia, não se terceiriza e não se intimida. Não se trata de blindagem institucional, tampouco de corporativismo judicial. Trata-se de um princípio elementar do convívio civilizado entre nações: nenhum país tem jurisdição sobre autoridades de outro Estado soberano. E qualquer gesto nesse sentido não é diplomacia. É ingerência. É, objetivamente, uma violação dos tratados internacionais, da Convenção de Viena e da própria Carta das Nações Unidas.

O desconforto não ficou restrito ao Brasil. A imprensa internacional repercutiu com gravidade o episódio. The New York Times, Le Monde, El País e tantos outros veículos alertaram para o risco desse caminho. Parlamentares europeus reagiram, organismos multilaterais acenderam os alertas, e governos de países historicamente comprometidos com o direito internacional manifestaram preocupação com o precedente que se tenta construir.

Porque, se hoje é um ministro brasileiro, amanhã pode ser qualquer magistrado, parlamentar, ativista ou jornalista de qualquer parte do mundo que decida não se curvar a interesses alheios.

Os fundamentos da soberania não são abstrações. Eles estão inscritos na Carta das Nações Unidas, na Convenção de Viena e em todo o edifício que dá sentido ao conceito de comunidade internacional. Ultrapassá-los não é apenas um erro diplomático — é um ataque direto ao pacto civilizatório que ainda sustenta, precariamente, o equilíbrio entre as nações.

Aceitar sanções unilaterais, seletivas e politicamente motivadas é mais do que aceitar a humilhação institucional. É normalizar a corrosão da República. É permitir que o Brasil, país livre, democrático e soberano, seja reduzido a uma peça secundária em um tabuleiro desenhado fora de nossas fronteiras — e longe dos nossos interesses.

Por isso, mais do que uma reação, impõe-se um compromisso. De Estado, de governo, de sociedade. O compromisso de lembrar, a quem for preciso — e quantas vezes for necessário — que quem cuida do Brasil é o Brasil. E nenhuma potência, por mais poderosa ou estridente que seja, tem autoridade para atravessar os limites da nossa Constituição, da nossa jurisdição e da nossa dignidade nacional.

 

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