Em sua crônica, o escritor Palmarí de Lucena lembra como a Lei Magnitsky, criada para punir violações de direitos humanos, tornou-se instrumento geopolítico e, cada vez mais, corporativo. “Sua aplicação seletiva ameaça até membros do Judiciário de países democráticos, quando suas decisões contrariam interesses dos EUA ou de big techs e, sob o pretexto de proteger direitos, mistura-se defesa humanitária com interesses econômicos e tecnológicos, corroendo soberanias”, pontua. Confira íntegra…
Em tempos de diplomacia líquida e fronteiras jurídicas cada vez mais nebulosas, a Lei Magnitsky emerge como um instrumento que desafia não apenas os infratores, mas também os conceitos clássicos de soberania e autodeterminação dos povos. Nascida do legítimo clamor por justiça diante da morte do advogado russo Sergei Magnitsky, ela rapidamente extrapolou os limites da indignação moral para se tornar uma espécie de tribunal global — unilateral, seletivo e, muitas vezes, paradoxal.
Com ela, os Estados Unidos se outorgaram o direito de sancionar quem bem entendem — de generais birmaneses a oligarcas búlgaros, de juízes nicaraguenses a secretários chineses, passando por líderes sauditas e venezuelanos. Não há foro privilegiado, nem imunidade diplomática que resista. Se o martelo americano desce, o acusado perde acesso ao sistema financeiro internacional, seus bens são congelados e seus nomes riscados do mapa das nações livres para circular.
Mas há um dilema ético e político inescapável: quem julga os juízes? Afinal, é no mínimo curioso — para não dizer cínico — que a nação que se recusa a reconhecer a jurisdição do Tribunal Penal Internacional em Haia, que rejeita qualquer ingerência sobre seus próprios militares e autoridades, se arrogue o papel de juiz moral do planeta.
Pior: o que era para ser um instrumento voltado contra déspotas, oligarcas e violadores de direitos humanos agora flerta perigosamente com a ideia de aplicar sanções contra membros do Judiciário de países democráticos, simplesmente por decisões tomadas no estrito exercício de suas funções constitucionais. Quando um juiz, amparado pelas leis de seu país, decide sobre processos sensíveis, e isso desagrada aos interesses estrangeiros, estaria ele, então, sujeito a retaliações econômicas? Desde quando julgar virou crime passível de sanção internacional?
Esse precedente é tão perigoso quanto inaceitável. Abre caminho para que decisões judiciais soberanas, tomadas dentro dos marcos constitucionais de uma democracia, sejam submetidas ao crivo de uma potência estrangeira. Transforma o conceito de “direitos humanos” em ferramenta de geopolítica, de intimidação e de chantagem econômica.
E há mais um fator incômodo que não pode ser ignorado: o possível — e cada vez mais evidente — lobby das big techs, empresas cujo poder transcende fronteiras e desafia até a soberania dos próprios Estados. Quando países, tribunais ou legisladores aprovam leis que tocam nos modelos de negócios dessas corporações — seja regulando plataformas digitais, protegendo dados de seus cidadãos ou combatendo monopólios —, não é raro observar, logo na sequência, uma escalada de pressões diplomáticas, ameaças econômicas e, eventualmente, a evocação da Lei Magnitsky como instrumento de coerção.
Será coincidência que, justamente nos países onde se discute taxar gigantes digitais, proteger dados nacionais ou limitar práticas predatórias, surjam súbitas preocupações “humanitárias” vindas do Departamento de Estado? Onde termina a defesa dos direitos humanos e começa a defesa dos interesses comerciais das plataformas globais? A linha é tênue — e, muitas vezes, convenientemente borrada.
Mais que um instrumento de justiça, a Lei Magnitsky tornou-se uma extensão da política externa americana e, não raro, também um braço invisível dos interesses corporativos do Vale do Silício. Um recado claro: quem pisa fora das linhas definidas por Washington — ou por seus conglomerados tecnológicos — corre o risco de ser riscado do mapa financeiro global. Não por um tribunal internacional, não por consenso das nações, mas por decreto de uma única potência, muitas vezes sob aplauso das mesmas empresas que hoje se colocam acima das próprias democracias.
Se, ontem, o alvo eram déspotas e cleptocratas, hoje são ministros de cortes constitucionais, juízes de tribunais superiores, autoridades de países com processos democráticos plenos — simplesmente por terem decidido conforme suas leis internas, ainda que isso desagrade interesses externos. A quem interessa a corrosão da independência judicial? Que democracia sobrevive quando o juiz vira refém de ameaças econômicas, diplomáticas e, agora, também tecnológicas?
Resta, portanto, a reflexão: até que ponto uma lei, por mais nobre que pareça, não se transforma, ela própria, em instrumento de opressão, desvirtuando o princípio que lhe deu origem? Quando a busca por justiça atravessa oceanos sem mandato coletivo, tenta subjugar até cortes supremas de democracias soberanas e se confunde com os interesses comerciais de corporações transnacionais, ela se aproxima perigosamente daquilo que pretendia combater: o abuso de poder.
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