
O artigo do escritor Palmarí de Lucena analisa o impeachment de juízes como indicador da saúde democrática. Mostra que, nos EUA, o instrumento existe, mas praticamente não é usado; na Europa Ocidental, o controle é judicial e técnico, não político; e na América Latina, o mecanismo tende à politização, servindo como pressão ou captura institucional. No Brasil, apesar da permissão constitucional, não houve destituições, mas proliferam ameaças retóricas. A conclusão é clara: democracias fortes protegem juízes; as frágeis os submetem ao poder. Confira íntegra…
Em toda democracia saudável, o poder de julgar é cercado de garantias. A principal delas é a independência do magistrado. Não por privilégio pessoal, mas porque sem juízes livres não há cidadãos livres. Ainda assim, nenhuma democracia séria concede aos tribunais um salvo-conduto absoluto. O desafio civilizatório está em encontrar o ponto de equilíbrio: como responsabilizar magistrados sem submeter a toga ao jogo rasteiro da política.
A resposta varia conforme a maturidade institucional de cada país. Nos Estados Unidos, por exemplo, juízes da Suprema Corte podem ser submetidos ao impeachment, mas esse dispositivo permanece, há mais de dois séculos, praticamente adormecido. Nenhum magistrado da Corte foi jamais destituído. O único julgamento relevante ocorreu em 1805, quando o juiz Samuel Chase foi absolvido — e o resultado foi decisivo: consolidou-se ali o entendimento de que divergência ideológica não é crime e não autoriza perseguição política.
Na Europa Ocidental, o modelo é ainda mais rígido. França, Alemanha, Itália e Portugal desmontaram o caminho do impeachment político como método de controle judicial. O afastamento de ministros de Cortes Constitucionais ocorre, quando muito, por via judicial, mediante processos técnicos, com provas claras de infração funcional grave. No Velho Continente, o Parlamento não serve como tribunal para juízes. A toga responde à lei, não a maiorias ocasionais.
A América Latina, como de costume, vive em outra coordenada histórica. O impeachment de magistrados existe formalmente, mas sua aplicação oscila de acordo com os ventos políticos. Em países como Venezuela e Bolívia, o instrumento foi convertido em arma de submissão institucional. Cortes inteiras foram reconfiguradas conforme interesses do Executivo ou de maiorias circunstanciais, transformando tribunais constitucionais em apêndices do poder.
No Brasil, esse mau exemplo ronda como ameaça retórica. Embora a Constituição permita o impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal, nenhuma destituição jamais ocorreu. Ainda assim, multiplicam-se pedidos de impedimento como forma de pressão política, não como resposta a crimes reais. O impeachment vira discurso de palanque, instrumento de intimidação e método de desgaste institucional.
É nesse ponto que o tema deixa de ser jurídico e passa a ser civilizatório. Quando se normaliza a ideia de “derrubar juízes” por discordância política, desiste-se de compreender o que distingue democracia de caudilhismo. Não há Estado de Direito onde magistrados precisam calcular o impacto político de cada voto para preservar o próprio cargo.
Responsabilizar juízes não é ataque à democracia. Ao contrário, é condição de sua integridade. Mas responsabilização pressupõe três elementos inseparáveis: fato grave, prova concreta e julgamento técnico. Quando se troca isso por manchete, pressão popular e retaliação política, o que se constrói não é justiça, mas medo.
O paradoxo latino-americano é simples e recorrente: quanto mais fraca a democracia, mais fácil remover juízes; quanto mais sólida, mais difícil. Nesse sentido, a dificuldade para destituir magistrados não é defeito do sistema — é seu termômetro de saúde.
O verdadeiro risco institucional não é a permanência de juízes nos tribunais. O perigo real nasce quando Cortes passam a ser lotes disputados por governos, partidos e coalizões. A história recente da região mostra que onde o juiz depende do humor das maiorias, o cidadão perde sua última instância de proteção.
Não é o juiz que precisa temer a democracia. É a democracia que adoece quando começa a temer seus juízes.
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