“A confiança na liderança americana rui, e o mundo trepida”, diz o escritor Palmarí de Lucena em seu novo comentário. E ainda: “A América Latina, antes tutelada, busca novos caminhos diplomáticos, mas, no Brasil, certos políticos ainda se ajoelham a Trump, defendendo tarifas que estrangulam nossas exportações e discursos que negam nossa autonomia, e assim a submissão ideológica se disfarça de alinhamento estratégico — mas serve apenas ao interesse alheio”. Confira íntegra…
Por mais de um século, os Estados Unidos sustentaram, sem pudor, a ideia de que a América Latina lhes pertencia — não formalmente, mas por direito histórico, estratégico e moral. Foi com base na Doutrina Monroe, proclamada em 1823, que o país se autoproclamou guardião do hemisfério ocidental, sob o slogan nada disfarçado de “América para os americanos”. Na prática, significava: “América para os interesses de Washington”.
Durante décadas, essa retórica se traduziu em intervenções, golpes apoiados nos bastidores, bloqueios econômicos e chantagens diplomáticas. A América Latina foi tratada como quintal — um território sob vigilância, domesticado ou punido conforme sua obediência ao centro de poder do Norte. No entanto, os tempos mudaram. E se o império ainda carrega seus velhos instintos, suas certezas já não encontram o mesmo eco. Pior: hoje é o próprio império que hesita.
A recente instabilidade do compromisso americano com seus aliados tradicionais, visível na ambiguidade de sua postura frente à guerra na Ucrânia e às garantias da OTAN, deixou o mundo em alerta. A retórica do atual presidente dos EUA, flertando com a propaganda russa e lançando dúvidas sobre a legitimidade da resistência ucraniana, reverberou não apenas na Europa, mas em todo o planeta.
Na linha de frente dessa inquietação estão os países bálticos, que conhecem, como poucos, o peso da ocupação e da traição internacional. Eles aprenderam, com sangue e silêncio, que nações pequenas não podem se dar ao luxo de depender da palavra de potências que mudam de humor conforme o ciclo eleitoral. Estão se rearmando, treinando civis, criando planos de fuga. Não por paranoia, mas por prudência.
E na América Latina? Aqui também, ainda que em tom mais contido, cresce a percepção de que o “protetor” pode não atender ao chamado. Brasil, México, Colômbia e outros países passaram a diversificar seus vínculos diplomáticos e comerciais, abrindo espaço para novos parceiros — incluindo China, União Europeia e blocos regionais. A lógica do alinhamento automático cede lugar a um cálculo mais frio: os Estados Unidos ainda são centrais, mas já não são confiáveis.
Ainda assim, certos setores políticos brasileiros insistem em nadar contra a maré. Uma verdadeira quinta-coluna — liderada por Eduardo Bolsonaro e orbitada por familiares e aliados — continua a agir como correia de transmissão dos interesses norte-americanos, mesmo quando esses interesses colidem frontalmente com os do povo brasileiro. Apoiam tarifas e medidas que prejudicam nossas exportações, sabotam iniciativas de integração sul-americana, e replicam discursos fabricados em Washington com zelo de colônia. Ao invés de defender a soberania nacional, optam por fazer política externa como vassalagem.
Não se trata de rompimento ideológico. Trata-se de sobrevivência estratégica. Quando o antigo guardião deixa de garantir segurança — ou, pior, demonstra desprezo pelos próprios compromissos — o mundo não para: ele se adapta. A América Latina, frequentemente tutelada como incapaz de decidir seus próprios rumos, começa a reivindicar protagonismo. E o faz não por ressentimento, mas por necessidade.
O colapso das certezas atlânticas atinge não apenas o flanco europeu. Ele desestabiliza a ideia — antes dominante — de que a liderança americana era um bem público global. Hoje, essa liderança se vê corroída por contradições internas, populismos em ascensão e uma diplomacia cada vez mais centrada em impulsos, não em princípios.
Resta ao mundo — e à América Latina em particular — aprender com os bálticos: não confiar em promessas, mas em estruturas; não se iludir com discursos, mas preparar-se para agir em nome próprio. A era em que esperávamos ordens da metrópole acabou. O quintal virou campo aberto — e a cerca, há tempos, caiu.
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