
Em seu artigo, o escritor Palmarí de Lucena denuncia a transformação do Parlamento em palco de ruídos e encenações, em detrimento da deliberação verdadeira. Aponta a centralização do poder, o esvaziamento do voto e a produção legislativa substituída por espetáculo e polarização. Crítica as lideranças mais preocupadas em manter aparências do que em conduzir reformas e decisões. Defende a recuperação da normalidade institucional, com transparência, pluralidade e responsabilidade, reafirmando que democracia exige escolhas visíveis, debate real e resultados concretos para a sociedade. Confira íntegra...
O Congresso não foi concebido para ser uma antessala de gabinetes fechados, nem um cartório onde se carimbam decisões amadurecidas fora do plenário. Sua razão de existir é o dissenso público, a disputa de ideias e a construção visível de consensos possíveis. Quando esse processo é sequestrado por poucos e o debate vira ornamento, a política perde oxigênio — e a sociedade, confiança.
O esvaziamento da deliberação não nasce de um governo, de uma sigla ou de uma legislatura específica. É corrosão lenta, que se instala quando regras fechadas substituem a discussão aberta, quando pautas surgem prontas e quando projetos “inadiáveis” chegam empilhados em milhares de páginas alheias ao tema central. Centraliza-se o controle, dilui-se a responsabilidade, apaga-se a autoria. O resultado é conhecido: pouca transparência, poucos resultados.
Parlamentos democráticos existem para decidir, não para protelar. Se assuntos que mobilizam amplas maiorias nunca chegam ao voto, algo está estruturalmente errado. O problema não é o conflito — é sua ausência institucionalizada. Votar não ameaça a democracia; é sua matéria-prima. O verdadeiro risco é impedir que decisões ocorram à vista do público.
A concentração de poder nas lideranças produz uma patologia previsível: todos declaram apoiar mudanças, poucos as sustentam quando a pressão é real. Discursos inflamados evaporam no instante decisivo. A coragem ganha preço; a obediência vira moeda.
Confunde-se disciplina com eficácia. Não são sinônimos. Uma Casa pode ser exemplar na liturgia e estéril na entrega. Governar não é temer o próprio reflexo — é escolher, explicar e assumir.
Esse enfraquecimento se agrava com a ascensão de mandatos conquistados mais pelo barulho do que pelo conteúdo. Multiplicam-se figuras que confundem visibilidade com produção, ataque com proposta, plateia com eleitorado. A política degrada-se em espetáculo: slogans no lugar de ideias, bordões no lugar de argumentos, torcidas no lugar de debate. O plenário passa a parecer menos uma oficina de soluções e mais uma arena de exibição.
A polarização, nesse ambiente, deixa de ser efeito colateral e vira produto. Vive-se do conflito como quem vive de renda fixa: quanto maior o choque, maior o engajamento; quanto maior o engajamento, mais capital simbólico. Instala-se uma economia do ruído em que escândalos rendem mais que leis e a performance mais que o texto.
Tudo isso é potencializado por uma liderança que, não raramente, parece mais ocupada em reorganizar o convés do Titanic do que em conduzir a embarcação em mar aberto. Retocam-se ritos, rearranjam-se cargos, inventam-se atalhos — mas o leme permanece frouxo. Em vez de abrir janelas, fecha-se a ponte de comando; em vez de distribuir responsabilidades, concentra-se poder; em vez de provocar o voto, posterga-se a decisão. A decoração muda; o rumo não.
A metáfora não é gratuita: enquanto a embarcação institucional faz água, a cúpula troca cortinas. O essencial — transparência, equidade e efetividade — cede espaço ao acessório. A liderança, que deveria ser farol, transforma-se em cortina. Não falta discurso; falta direção. Não faltam reuniões; faltam resultados.
Há ainda o custo silencioso da sub-representação. Quando vozes não circulam nos centros de decisão, perde-se talento e inteligência coletiva. Representar não é ocupar cadeira; é disputar sentido. Sem pluralidade concreta, o Parlamento vira espelho estreito de uma sociedade larga.
A saída não é retórica, é institucional. Chama-se normalidade democrática: regras previsíveis, comissões atuantes, emendas debatidas, votações claras. Menos encenação, mais autoria. Menos tutela, mais confiança. Democracias não sobrevivem de decibéis; sobrevivem de método, texto e decisão.
O voto é a sílaba final da política responsável. Onde não se vota, instala-se a sombra; onde tudo ocorre na sombra, evapora-se a legitimidade. Parlamentos maduros não temem a luz. Preferem o risco da transparência ao conforto do bastidor.
Que se vote. Que se veja. Que se responda. A política só recupera o próprio nome quando aceita ser pública. E instituições só atravessam tempestades quando têm leme — não apenas lustre.
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