
Em seu comentário, o escritor Palmarí de Lucena narra a forma que Anne Applebaum analisa como Donald Trump transformou o grotesco em estratégia política, usando um vídeo criado por IA em que despeja excrementos sobre manifestantes para ridicularizar o dissenso. O episódio revela o uso deliberado da desumanização como método autoritário: substituir o debate pelo escárnio e a empatia pela repulsa. Contra essa degradação moral, Applebaum defende que a resistência democrática começa na recusa em se sujar com a mesma lama. Confira íntegra…
Há momentos em que a política abandona o campo das ideias e desce ao subterrâneo da moral. Anne Applebaum, uma das mais lúcidas intérpretes do autoritarismo moderno, observou esse fenômeno com precisão ao analisar a nova ofensiva digital de Donald Trump. O ex-presidente americano, que há anos transforma a provocação em método político, publicou recentemente um vídeo criado por inteligência artificial em que aparece como piloto de caça, coroado, sobrevoando uma cidade e despejando excrementos sobre manifestantes. A imagem é repugnante, mas reveladora: ela traduz a essência de um discurso que trocou o argumento pela escatologia e o diálogo pela humilhação.
Em 1989, o tenente-coronel Harald Jäger, diante de uma multidão que clamava pela liberdade, decidiu abrir um dos postos do Muro de Berlim. “Percebi a estupidez, a falta de humanidade, e resolvi fazer o que era certo”, diria anos depois. O gesto de um homem comum tornou-se símbolo de um tempo em que a consciência individual ainda era capaz de romper as muralhas do poder. Décadas depois, o gesto inverso se repete: um líder político ergue um muro invisível entre cidadãos de uma mesma nação, recobrindo o dissenso com lama simbólica, tentando transformar o adversário em inimigo, o contraditório em sujeira.
O que Applebaum identifica, com a acuidade que lhe é habitual, não é apenas uma grosseria isolada, mas uma estratégia. Ao zombar de milhões de americanos, Trump tenta impedir que seus próprios seguidores reconheçam nos opositores um traço comum de humanidade. É a lógica do desprezo — instrumento antigo dos regimes autoritários, agora amplificado pela tecnologia. O insulto substitui a argumentação, a caricatura ocupa o lugar da crítica, e a repulsa se converte em método de controle. Quando a política passa a cheirar mal, não é por acidente: é porque alguém decidiu transformar o esgoto em linguagem de governo.
Essa dinâmica é perigosa porque se naturaliza. O riso cínico, a piada grosseira e a imagem grotesca servem para dessensibilizar o público. O que antes seria escandaloso passa a ser apenas mais um episódio “divertido”. Aos poucos, a fronteira entre o absurdo e o aceitável se dissolve. Nos regimes autocráticos, esse processo costuma ser o prelúdio de algo mais grave: quem discorda passa a ser considerado “não cidadão”, “não patriota”, “não humano”. O deboche é apenas a antecâmara da perseguição.
Ainda assim, há antídotos possíveis. A força do ridículo pode ser revertida pela serenidade da razão. O esgoto perde o poder quando a sociedade resiste à lama sem se sujar. Protestar, votar, organizar-se e, sobretudo, recusar a tentação do ódio são atos que mantêm viva a dignidade cívica. A democracia, afinal, não se preserva apenas com instituições: ela se sustenta na coragem de quem, como Jäger, escolhe fazer o que é certo quando o medo, o cinismo e a indiferença parecem mais fáceis.
A história ensina que nenhuma muralha é eterna, mas também alerta que a decadência moral pode ser lenta e disfarçada. A diferença está no gesto — o de abrir uma cancela, ou o de lançar lama sobre quem atravessa a rua. Em cada época, é esse gesto que revela de que lado estamos.
(Inspirado no artigo “Why Trump Turned to the Sewer”, de Anne Applebaum, publicado em The Atlantic em 20 de outubro de 2025).
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