O escritor Palmarí de Lucena, ora na Islândia, nos brinda com uma crônica, em que refaz o caminho de Reykjavík, onde já estava décadas atrás, e quando era apenas uma cidade pequena, “quase uma aldeia”. E ainda: “Agora, volto com os cabelos grisalhos, mas os olhos ainda carregam a mesma fome de descoberta. A cidade cresceu, o porto brilha com barcos modernos, cafés aquecem a noite, e ainda assim a essência é a mesma: vastidão, vento, solidão luminosa. A Islândia permanece igual e, ao mesmo tempo, nunca é a mesma.” Confira íntegra...
Mais de meio século separa minha primeira passagem pela Islândia deste retorno. Lembro-me da cidade pequena, Reykjavík tímida, quase aldeia, onde o silêncio das ruas dizia mais que qualquer palavra. Caminhei entre os dentes de dragão — rochedos cuspidos por vulcões — e pela tundra interminável, cinzenta em sua monotonia, mas fascinante em sua essência. Era como atravessar um território primordial, onde o tempo parecia suspenso.
Agora, volto com os cabelos grisalhos, mas os olhos ainda carregam a mesma fome de descoberta. A cidade cresceu, o porto brilha com barcos modernos, cafés aquecem a noite, e ainda assim a essência é a mesma: vastidão, vento, solidão luminosa. A Islândia permanece igual e, ao mesmo tempo, nunca é a mesma.
É quando a noite desce que tudo se revela. Primeiro um sopro verde no horizonte, tão frágil que poderia ser sonho. Depois, véus inteiros, respirando sobre a escuridão, como serpentes de luz. E, de repente, manchas vermelhas tingem o firmamento, brasas silenciosas suspensas no frio. A tundra se apaga, a mesmice se dissolve. O mundo inteiro é apenas aurora.
Na beleza dessas cores flutua algo profundamente humano. Cada variação, cada procura, cada desenho efêmero parece refletir nossas próprias inquietações e esperanças. A aurora não apenas ilumina a noite — ela desenha no céu o que não sabemos dizer: desejos, lembranças, promessas.
Entendo, então, as antigas crenças. Para os vikings, eram as espadas das valquírias conduzindo os mortos ao Valhalla. Para os povos sami, espíritos que exigiam respeito, jamais assobio ou dedo apontado. Para os inuítes, eram as almas dos animais caçados, dançando em gratidão. A ciência fala em partículas solares e campos magnéticos, mas diante da aurora nenhuma explicação basta. Ela é, antes de tudo, uma carta escrita em luz, cujo destinatário é sempre o coração humano.
Sob o céu em metamorfose, senti-me pedra entre pedras, mas por dentro fui atravessado por séculos de memória. Era ao mesmo tempo o jovem que estivera ali e o homem que retorna. A aurora costurava passado e presente, lembrança e sonho, como se o tempo fosse um círculo luminoso que se fecha sobre si mesmo.
E quando as luzes enfim se dissiparam, não houve vazio. Ficou o rastro — a certeza de que viajar não é apenas atravessar geografias, mas também atravessar a si mesmo. Que a vida, como a aurora, é feita de clarões breves que nos tocam, transformam e, mesmo quando se apagam, continuam ardendo dentro de nós.
E enquanto a noite voltava ao silêncio, senti que a aurora não tinha apenas iluminado o céu da Islândia, mas também clareado o meu próprio interior. Como se cada cor tivesse descido até a memória e acendido, em mim, um fogo discreto — feito de lembranças, de perdas, de descobertas. Trago comigo não só a imagem das luzes dançantes, mas a certeza íntima de que o que vi fora e o que senti por dentro são a mesma coisa: o milagre da vida revelado em clarões que nunca se apagam.
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