Em seu novo comentário, o escritor Palmarí de Lucena afirma que, “enquanto os novos conspiradores enfrentam julgamento, os antigos apologistas do golpe de 1964 jamais prestaram contas”. Para este texto, Palmarí encaminhou uma imagem que, “em tom severo e simbólico, projeta um tribunal onde a História, enfim, exige explicações”. Uniformes e paletós dividem o banco dos réus, lembrando que nenhuma ruptura se apaga sem memória — “e que o tempo, tarde ou cedo, cobra o silêncio cúmplice”. Confira íntegra…
Enquanto ex-altas patentes militares e ex-assessores do Planalto são julgados por arquitetar a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, alguns dos mais ruidosos conselheiros da legalidade atual são, paradoxalmente, os mesmos que celebraram — ou silenciosamente consentiram — o golpe de 1964. Há algo de perversamente irônico quando a história é evocada por quem nunca foi cobrado por ela.
Durante décadas, a ruptura institucional de 1964 foi apresentada por setores militares, empresariais e conservadores como um “contragolpe”, uma “revolução redentora” ou uma “necessidade histórica”. Os apologistas desse ato — civis e fardados — foram acolhidos com comendas, pensões, salas de aula e microfones. Jamais sentaram no banco dos réus. Pelo contrário: ocuparam gabinetes e ditaram narrativas.
Hoje, enquanto o Brasil assiste ao julgamento daqueles que atentaram contra a ordem democrática em pleno século XXI, muitos herdeiros discursivos de 1964 se apressam em aconselhar prudência, moderação e diálogo — como se a moderação tivesse sido uma virtude em 1964, como se o diálogo não tivesse sido, então, silenciado pela força.
É preciso nomear o paradoxo: os que apoiaram ou omitiram-se frente a um regime que torturou, censurou e cassou, hoje se colocam como guardiões da estabilidade institucional, desde que o autoritarismo lhes tenha sido simpático. E os que agora sentem o peso da lei por conspirar contra as urnas e o Supremo, recorrem a esses conselheiros — em busca de legitimidade ou de consolo.
O Brasil é um país que perdoa golpes com impressionante generosidade, mas desconfia da democracia como se ela fosse um favor, não um direito. O não julgamento de 1964 talvez seja o berço da impunidade de 2023. E o silêncio oficial sobre os crimes da ditadura segue ecoando nos corredores onde se planejam rupturas.
É necessário romper esse ciclo. A memória histórica não pode ser seletiva, nem o compromisso com a democracia pode depender da coloração do golpe. Ou se condena toda tentativa de ruptura institucional — passada, presente e futura — ou estaremos sempre à espera do próximo 1º de abril ou 8 de janeiro.
Se o Brasil quer amadurecer como nação democrática, precisa parar de ouvir conselhos dos que não foram julgados e começar a escutar os que lutaram — muitas vezes sozinhos — pela restauração da legalidade. E, acima de tudo, precisa fazer da Justiça um instrumento de memória, não apenas de punição.
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