PENSAMENTO PLURAL Quem gosta de carregar peso?, por Durval Leal Filho

Em seu comentário, o cineasta Durval Leal reflete sobre a necessidade de aplicarmos o desapego, como forma de reduzir “o peso da idade, o peso da vaidade, o peso da ignorância e o peso das decisões”. Também adverte: “Ninguém quer carregar alguém pesado, nem mesmo a família, porque o cuidado contínuo vira obrigação e, com o tempo, vira exaustão.” E arremata: “No fim, o peso não é mero acidente: ele é parte da condição humana. A pergunta que fica é dura e não oferece conforto: somos pesados porque acumulamos, ou acumulamos porque não sabemos exercitar o desapego?” Confira íntegra...

É triste pensar que a gente está acima do peso: o peso da idade, o peso da vaidade, o peso da ignorância e o peso das decisões. É triste estar acima do peso. O espelho é difícil, tanto na consciência do olhar quanto na balança abaixo dos pés.

O espelho mostra o peso nas pálpebras, nas bochechas caídas, na postura que se entrega à gravidade. Somos seres dependentes da física, e o peso, fisicamente, é ruim de carregar. É ruim de suportar e, muitas vezes, ruim de compreender: não apenas o quanto o corpo pesa, mas o quanto nós pesamos para o outro.

Há um peso que se manifesta na convivência. Pesamos nas críticas que fazemos e na forma como as repetimos. Pesamos na leitura crítica do mundo quando ela deixa de ser método e vira hábito de desqualificar tudo. Pesamos no rancor, na mágoa, na rigidez do juízo.

Pesadas são as perguntas que guardamos para nós mesmos, quando não as enfrentamos com clareza e as transformamos em carga. O peso é o que acumulamos por dentro: tempo, lembranças, pendências. E pesa também o que fizemos e não corrigimos: atitudes, erros, omissões. O corpo registra o fardo, mas a consciência é a parte que mais cansa.

O peso da idade não é apenas o cansaço, é o acúmulo. Os anos tornam a gente mais denso, com menos elasticidade no corpo e, às vezes, na mente. O peso da vaidade é outro: ele nos faz carregar máscaras, sustentar um personagem que exige esforço diário. Com o tempo, a máscara não cai, ela gruda. A vaidade, quando vira regime de aparência, transforma o espelho em juiz.

A ignorância, por sua vez, pesa por ser indiscreta: ela se instala como certeza e nos impede de revisar crenças, de corrigir preconceitos, de aprender. É um peso que não se mede, mas se sente no atrito com o outro e no empobrecimento do pensamento.

Nas decisões, o peso se multiplica. Cada escolha adiciona responsabilidade, consequência e memória. Quando a escolha é equivocada, não é só o erro: é o remorso, a repetição mental do “e se”, a tentativa de reescrever o passado como se isso aliviasse o presente.

O espelho, nesse contexto, não reflete apenas o corpo, ele devolve a consciência. Pálpebras pesadas denunciam noites interrompidas, bochechas caídas denunciam a gravidade emocional. A lei da gravidade não negocia, e o peso corporal se torna uma metáfora direta do fardo interno: ambos exigem esforço constante, ambos doem quando se acumulam.

O problema é que o peso não fica contido em quem o carrega. Socialmente, ele aparece quando nos tornamos difíceis: no tom de voz, na insistência, na crítica como forma de presença.

Nossas palavras podem ser pedras, e o que lançamos volta.

Quando o rancor domina, o diálogo perde leveza e a convivência vira disputa. A leitura crítica, quando não vem acompanhada de discernimento, vira cinismo; e o cinismo pesa. A pessoa que só aponta falhas e só enxerga desvios se torna, ela mesma, um desvio: afasta, endurece, empobrece o encontro.

Há também o peso da saudade. Dias pesam para quem não consegue esquecer a distância dos filhos, a perda de um amor, a interrupção de uma história. A saudade comprime o peito e muda o ritmo das horas. E, quando a doença chega, o peso se torna mais literal e mais grave.

Desânimo, limitações, crises: a gravidade do corpo encontra a gravidade do sofrimento. A imobilidade, além de reduzir o movimento, altera a relação com a companhia. Ninguém quer carregar alguém pesado, nem mesmo a família, porque o cuidado contínuo vira obrigação e, com o tempo, vira exaustão.

O peso, então, ultrapassa o físico e entra no monetário: custos, remédios, adaptações, deslocamentos, tempo de trabalho perdido. A dependência instala um cargo invisível de cuidador, e isso pesa em quem cuida e em quem é cuidado. Mesmo numa cadeira de rodas, a tragédia não é apenas a limitação; é a consciência de ser levado, empurrado, sustentado. O amado sente o próprio peso como condenação, e o entorno sente o peso como rotina.

É triste porque esse peso invade a alma. Sentir pena do outro não resolve, muitas vezes, só organiza a distância. A pena não alivia; pesa. Pesa a dor de relegar o outro ao lugar do dependente, do doente, do que não decide. Pesa a tristeza alheia quando ela vira clima permanente, quando domina a casa e reorganiza as relações. E a “pena” se torna tão pesada que não vale a pena. A frase de Pessoa (“Tudo vale a pena se a alma não é pequena”) atravessa como provocação: o problema não é sofrer, é reduzir a alma ao tamanho do fardo.

No fim, o peso não é mero acidente: ele é parte da condição humana. A pergunta que fica é dura e não oferece conforto: somos pesados porque acumulamos, ou acumulamos porque não sabemos exercitar o desapego?

O peso nos obriga a encarar o espelho de vidro e o espelho da consciência. Carregar é existir; suportar é sobreviver. Mas entender, com lucidez, o que estamos acumulando, e o que estamos impondo ao outro, pode ser o único movimento que reduz o fardo.

O peso maior talvez não esteja no corpo: está no que insistimos em manter, mesmo quando já nos dobra e sobra.

 

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