PENSAMENTO PLURAL República da blindagem e dos feudos, por Palmarí de Lucena

Em seu novo texto, o escritor Palmarí de Lucena denuncia o domínio fisiológico do Centrão na política brasileira, comparando-o a um organismo que se nutre de emendas, cargos e privilégios. Exalta a banalização da corrupção, o nepotismo eleitoral e a blindagem parlamentar. “O Congresso vira feudo, o voto perde valor e a democracia sangra. Ainda assim, há sinais de resistência. Mas a cura não virá de dentro”, afirma. Confira íntegra…

Há um corpo no centro da política brasileira. Um corpo estranho, porém vital. Um organismo que pulsa de acordo com a maré dos interesses, flexiona músculos conforme o preço da lealdade e sobrevive de trocas silenciosas, quase orgânicas. Chamam-no de Centrão, mas talvez o nome mais preciso fosse fisiologia institucionalizada. Não é um partido, nem uma ideologia: é um metabolismo.

Essa fisiologia se alimenta de emendas, cargos, orçamentos secretos, medidas provisórias e silêncios bem pagos. Nada a ver com as funções nobres da política: representação, debate, projeto de nação. Aqui, o verbo é “acomodar” — não ideias, mas conveniências. O Centrão não governa: ele viabiliza. É o preço da governabilidade em parcelas, debitadas diretamente na consciência da República.

Mais que isso: é o viveiro de legisladores que jamais leram a Constituição, mas decoraram o caminho até o caixa do gabinete. São deputados e senadores que se elegem como representantes sindicais, lideranças evangélicas ou figuras folclóricas de redes sociais. Poucos apresentam projetos consistentes; muitos, no entanto, apresentam faturas de diárias, salários e privilégios que envergonhariam qualquer trabalhador honesto. O Congresso transformou-se em um condomínio onde cada apartamento representa um interesse privado — seja o do agronegócio, das empreiteiras, da fé ou da família, desde que esta inclua um parente com cargo comissionado.

Nesse edifício de portas giratórias, os retrocessos ganham aparência de pautas. Não é raro ver propostas que atacam direitos civis, desmontam políticas ambientais, sabotam o ensino público ou flertam com o autoritarismo — sempre sob o verniz da moral, da tradição ou do empreendedorismo. Mas tudo é cálculo. Tudo é moeda. A religião vira trampolim, o sindicato vira palanque, e o eleitor vira escada.

No fundo desse sistema, esconde-se uma engrenagem mais sinistra: a corrupção que se mascara de rotina administrativa. A advocacia administrativa — aquele crime que acontece quando um agente público usa a máquina estatal para beneficiar amigos ou interesses próprios — tornou-se apenas um modo de operar. Licitações são arranjadas como peças de dominó, pareceres técnicos viram favores com timbre oficial, e empresas nascem já com o CNPJ carimbado pela vitória em licitações que ainda não foram abertas.

Mas tudo isso seria apenas mais um escândalo se não houvesse o escudo perfeito: a imunidade parlamentar. Que era para proteger ideias virou trincheira de proteção pessoal. Não se trata de liberdade de expressão, mas de blindagem judicial. O que vemos, cada vez mais, é a manipulação descarada de prerrogativas legislativas para obstruir investigações, retardar julgamentos, pressionar juízes, intimidar delatores e desfilar arrogância nos corredores do Congresso com um sorriso que diz: “aqui, a lei precisa pedir licença”.

E por trás de muitos mandatos, uma dinastia. O pai elege o filho, que elege a esposa, que depois nomeia o sobrinho, que contrata a nora como assessora. Chama-se nepotismo eleitoral. A urna, nesse caso, não é instrumento de cidadania: é herança. E cada mandato vira um feudo moderno.

O mais grave, contudo, é a indiferença. Quando tudo isso se normaliza, quando a imprensa já trata os esquemas como parte do jogo, quando os eleitores repetem “todos são iguais” e desistem de escolher, a democracia sangra. A corrupção política não é só desvio de dinheiro: é erosão de confiança. E sem confiança, o voto vira moeda inútil.

Ainda assim, há sinais de cansaço nas pedras da Praça dos Três Poderes. Há juízes que não se curvam. Há vozes que gritam nas redes, mesmo abafadas pelos algoritmos. Há jovens que ainda sonham com um país onde ser decente não seja um fardo ou uma exceção.

Mas o primeiro passo é admitir: a fisiologia está doente. E o remédio não virá de dentro do corpo que se alimenta dela.

 

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