PENSAMENTO PLURAL Salaspils e a Colina das Cruzes: Estrada da Memória entre Letônia e Lituânia, por Palmarí de Lucena

DCIM101MEDIADJI_0313.JPG

Em Salaspils, perto de Riga, ergue-se o memorial do antigo campo nazista, onde milhares de judeus, soviéticos e crianças pereceram no silêncio da fome e do frio. No chão, um metrônomo pulsa como coração da memória. Mais ao sul, na Lituânia, a Colina das Cruzes ecoa resistência: milhares de cruzes erguidas contra o esquecimento soviético. Pedra e madeira, luto e fé unem dois povos na coragem de existir. Mais uma crônica de viagem do escritor Palmarí de Lucena, em seu retorno aos Países Bálticos. Confira íntegra…

Lembro-me de quando cheguei a Salaspils, nos arredores de Riga. O vento soprava frio sobre o campo aberto, e cada rajada parecia carregar um murmúrio de luto. Ali, onde antes funcionara um dos maiores campos de concentração nazistas da região, ergue-se hoje um memorial feito de concreto, silêncio e lembrança.

O campo de Salaspils foi erguido em 1941, durante a ocupação alemã, para servir de local de trabalho forçado e prisão de opositores. Calcula-se que cerca de 12 a 15 mil pessoas — letões, judeus, ciganos, prisioneiros de guerra soviéticos, mulheres e crianças — tenham passado por ali em condições desumanas. Muitos sucumbiram à fome, às doenças, ao frio e aos maus-tratos. Crianças eram separadas das famílias, usadas em experimentos médicos ou simplesmente deixadas à própria sorte. O campo não tinha câmaras de gás como em Auschwitz, mas a morte rondava em silêncio, em cada esquina. Era um lugar pensado para destruir lentamente.

As esculturas gigantescas que hoje se erguem sobre o terreno parecem vigiar o horizonte: o Homem Humilhado, o Juramento, a Mãe. Figuras petrificadas, mas vivas na memória de quem as contempla. No chão, um metrônomo marca o tempo como um coração insistente, batendo pelos que já não podem mais. Caminhar por aquele descampado foi como sentir a história pesar nos ossos. Não havia ornamentos, apenas o silêncio absoluto — e nele, o grito que pedia para nunca esquecer.

Segui viagem rumo ao sul, atravessando fronteiras, até encontrar, já na Lituânia, a Colina das Cruzes. Se em Salaspils o silêncio falava de dor, aqui era o som que dominava: um tilintar metálico, suave e contínuo, criado pelo vento que movia milhares de cruzes de madeira e ferro. Mais de 100.000 símbolos de fé se entrelaçavam diante de mim, numa paisagem que parecia ao mesmo tempo surreal e profundamente humana.

Soube então da história: a tradição começou no século XIX, quando famílias que haviam perdido seus entes queridos nas revoltas contra o domínio czarista — muitas vezes sem direito a sepultura cristã — passaram a erguer cruzes naquela elevação. Era um gesto de luto e súplica, mas também de esperança. Mais tarde, durante a ocupação soviética, a colina tornou-se um santuário de resistência. Tratores derrubaram as cruzes inúmeras vezes, tentando apagar qualquer vestígio da fé popular. Mas, como uma promessa renascida, as cruzes sempre voltavam a brotar na noite seguinte, em número ainda maior.

A força da colina não estava apenas na quantidade, mas no que cada cruz representava. Pequenas ou grandes, de madeira, ferro ou pedra, todas carregavam histórias de fé, dor, agradecimento e promessa. Cada cruz era uma voz que se recusava a calar, um ato de coragem diante da tirania. Estar ali era sentir o peso da obstinação de um povo que, mesmo sob o jugo mais severo, nunca abandonou a própria alma.

Vi diante de mim duas lições distintas, unidas pela mesma essência. Em Salaspils, a lembrança do silêncio imposto pelo nazismo; em Šiauliai, o canto insistente das cruzes contra a tirania soviética. Pedra e madeira, luto e esperança. Entendi que a verdadeira resistência não é apenas militar ou política: é espiritual, comunitária, cultural.

Na solidão desses lugares, percebi que nenhum invasor, por mais brutal, conseguiu esmagar o que realmente importa. Entre as esculturas de concreto e o mar de cruzes ergue-se uma estrada invisível que liga Letônia e Lituânia — e nela, a certeza de que a união dos povos, feita de fé e coragem, é mais forte do que qualquer arma.

 

Os textos publicados nesta seção “Pensamento Plural” são de responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a opinião do Blog.