PENSAMENTO PLURAL Supremas Cortes sob pressão: ética, exposição e desconfiança pública, por Palmarí de Lucena

O escritor Palmarí de Lucena lembra como “a recente adoção de um código de conduta pela Suprema Corte dos EUA expôs mais que respostas formais: revelou a fragilidade da confiança pública diante de conflitos aparentes envolvendo ministros como Clarence Thomas e Samuel Alito”. No Brasil, o STF enfrenta desgaste semelhante por excessiva exposição e personalização da toga. A iniciativa de Edson Fachin em defender maior discrição surge como contraponto institucional. Em ambos os países, a lição é a mesma: sem sobriedade e transparência, a autoridade judicial se corrói. Confira íntegra...

A Suprema Corte dos Estados Unidos aprendeu, tarde, que a Justiça não vive apenas de sentenças — vive de sombras bem colocadas. Quando a luz incide demais sobre o juiz, a toga perde espessura e a instituição começa a parecer menor que o cargo. Foi isso que ocorreu quando os nomes de Clarence Thomas e Samuel Alito, os dois ministros mais conservadores da Corte, migraram das páginas jurídicas para o noticiário político e social.

No caso de Thomas, investigações jornalísticas revelaram viagens custeadas por um empresário politicamente ativo e benefícios não declarados durante anos. A discussão jurídica se concentrou em aspectos formais de prestação de contas, mas o estrago maior foi simbólico. A confiança da opinião pública não costuma ruir por um evento isolado, e sim pela repetição de desconfortos que não encontram resposta convincente.

Com Alito, o ruído veio da exposição pessoal. Viagens, vínculos privados e a exibição pública de símbolos associados a disputas políticas trouxeram para dentro da esfera doméstica aquilo que deveria permanecer fora dela: a manifestação visível de preferências ideológicas. Um juiz pode ter convicções; o problema começa quando elas se tornam sinalização pública.

Nenhuma dessas situações prova, por si, favorecimento judicial. Mas cortinas institucionais não se rasgam apenas com provas — rasgam-se com suspeitas. Em tribunais constitucionais, a aparência de independência é parte da independência.

Foi sob esse desconforto que a Suprema Corte americana anunciou, em 2023, seu primeiro Código de Conduta. Um marco tardio, porém, histórico. Mas o texto foi recebido com ceticismo: não há órgão fiscalizador externo, não há sanções claras, não há instância revisora. Cada magistrado segue sendo juiz da própria conduta. Eticamente, é pouco. Institucionalmente, é insuficiente.

No Brasil, o problema não é a ausência de normas. Há Código de Ética, há o Conselho Nacional de Justiça, há regulação formal. O desgaste aqui tem outra natureza: a superexposição. O Supremo Tribunal Federal transformou-se lentamente em arena pública, onde decisões importantes convivem com pronunciamentos que extrapolam os autos.

Ministros passaram a ser identificados como intérpretes permanentes da política, e não apenas da Constituição. O tribunal ganhou visibilidade — e perdeu distância. A toga ficou mais próxima das luzes que da penumbra necessária à autoridade.

É nesse contraste que a postura do ministro Edson Fachin assume relevância simbólica. Ao defender mais discrição, contenção institucional e menor protagonismo fora dos processos, Fachin não propôs reforma constitucional nem confronto político. Propôs o óbvio — que anda em falta: que juiz seja juiz, e não personagem central da cena pública.

Enquanto nos Estados Unidos a controvérsia nasce no mundo privado, no Brasil ela nasce na praça. Mas o efeito é semelhante: erosão da autoridade simbólica.

Nada explode nas Cortes Supremas. Tudo corrói. O desgaste é lento, quase invisível, feito de pequenos gestos que não chegam a escândalo, mas se acumulam como ferrugem institucional. A toga não foi feita para brilhar. Foi costurada para ocultar o indivíduo e preservar a função. Quando se inverte a lógica — quando o cargo serve para engrandecer o ocupante — a Justiça perde o véu e o Estado perde o abrigo. Tribunais não se sustentam pelo poder que exercem, mas pela confiança que inspiram. E confiança não se impõe por autoridade: constrói-se pelo gesto contido, pela palavra medida, pela recusa ao protagonismo.

Nos Estados Unidos, casos envolvendo Clarence Thomas e Samuel Alito mostraram como a simples aparência de vínculo já basta para abalar certezas, ainda que não se prove interferência direta nas decisões. No Brasil, a postura defendida por Edson Fachin aponta para o valor da contenção como forma de proteção institucional. Trata-se do mesmo alerta, em duas línguas: quando juízes parecem parte, deixam de parecer árbitros; quando a toga vira vitrine, a Justiça se parece com feira — e, nesse ruído, ninguém mais escuta o peso da balança.

 

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