PENSAMENTO PLURAL Supremo tragédia: feminicídio, por Durval Leal Filho

O cineasta Durval Leal, em seu comentário, expõe sobre a tragédia do feminicídio que tem ocupado o noticiário dos últimos tempos. Diz: “Em momentos de revolta, chego a pensar, num impulso quase cínico e desesperado: se fosse para existir “legítima defesa da honra”, ela deveria ser das mulheres contra os homens. Eu trucidaria homens por ousarem tocar em minhas filhas. Homicidaria ou mataria sem desonrá-las.” Confira íntegra…

Ontem, algum dia desses, uma amiga me instigou dizendo que, na minha CRÔNICA BURLESCA: MEU DELAY DEZ_HUMANO, tinha pontos de razão no que eu tinha ouvido e dito das mulheres. Essa provocação não me deixou em paz.

“Acho que o prazo de validade de homens e mulheres chega quando nos abandonamos. Seja consciente ou inconscientemente. As mulheres são cruéis sim, mas principalmente com elas próprias, por se julgarem muito, se amarem e pouco, e serem desunidas. Resumindo: não há tempo bom para as mulheres. Algumas conquistas são visíveis, entretanto, estão nos matando como moscas.”

Comecei a perceber que, por trás da minha ironia, havia uma tristeza profunda, um incômodo real com o tempo em que vivemos, existe um feminicídio descarado… repetido, quase naturalizado. O que é isso que estamos vivendo?
Até nas supremas cortes de justiça, as mulheres conhecedoras do Direito são excluídas de estar presentes e de ocupar seu lugar, sendo privadas de seu direito de cidadania, mesmo constituindo a maioria da população.

Em que ponto as torpezas dez_humanas chegaram ao limite? O “demasiadamente humano masculino” tornou-se vil, grotesco e leonino. Não no sentido da leoa que mata para sobreviver, mas da sanha de devorar, de destruir, de sentir-se autorizado a dispor de corpos e vidas de mulheres como se fosse algo disponível, descartável, justificável.
Lembro de algo que escuto desde muito tempo atrás, uma expressão que sempre me causou estranheza: “legítima defesa da honra”. O que é a honra masculina? É a honra de não levar “chifre”? É a honra de não ser traído? Que honra tinha Doca Street?

É a desonra de saber que a mulher teve outro desejo, outro corpo, outra experiência? É a desonra de não suportar que o desejo dela possa estar em outro lugar, em outra pessoa, pelo controle sobre o corpo e a vida de uma mulher

Quando se fala em “defesa da honra”, quase sempre é a honra masculina que está em jogo. A honra da mulher raramente entra nessa conta. A violência contra ela é tolerada, silenciada, às vezes até celebrada, como se fizesse parte do script da masculinidade.

Todo homem trai, dizem alguns, como se fosse uma natureza inevitável. E, no entanto, poucas mulheres matam. Gostaria que as mulheres matassem mais homens, pelo menos para empatar o jogo? Não. Essa é uma revolta que nasce do exagero burlesco, da indignação diante da desproporção entre quem mata e quem morre, entre quem é protegido e quem é culpabilizado. É a metáfora da vingança que aponta para o absurdo da balança: o peso da culpa recai sempre sobre elas. É essa a herança da legítima defesa da honra, que reaparece, às vezes explícito, às vezes disfarçado.

Em momentos de revolta, chego a pensar, num impulso quase cínico e desesperado: se fosse para existir “legítima defesa da honra”, ela deveria ser das mulheres contra os homens. Eu trucidaria homens por ousarem tocar em minhas filhas. Homicidaria ou mataria sem desonrá-las!!

Há mais mulheres do que homens no mundo. E, no entanto, são elas as que mais morrem vítimas de violência doméstica, de feminicídio, de ataques covardes justificados por narrativas de ciúme, posse, traição. Quantas vezes já ouvimos: “fiz por amor”, “ela me provocou”, “não aguentei a traição”.

O velho fantasma da “legítima defesa da honra”, ainda sinto vergonha do Evaristo, com a retórica da vil defesa, que ronda o discurso, mesmo quando as leis tentam dizer o contrário. É como se sempre houvesse uma brecha, uma tolerância social que absolve, atenua, compreende o assassino e suspeita da vítima.

Penso nas mulheres que sentem, dia após dia, o cheiro da ameaça, o olhar de ódio, a palavra cortante que antecipa o golpe. Penso nas que têm medo de voltar para casa, de dormir, de acordar. Nas que sabem, muito antes de qualquer boletim de ocorrência, que estão em risco.

A legítima defesa, para elas, seria o direito de se manter vivas, de se afastar, de romper o ciclo antes da agressão fatal. Mas esse direito é constantemente negado, silenciado, ridicularizado.

Em tom de ironia dolorida, já pensei que uma mulher não precisaria “matar” um homem para se defender. Bastaria jogar água fervendo no ouvido de um agressor para neutralizá-lo. Não para justificar a violência, mas para escancarar o absurdo de se exigir delas paciência, tolerância, compreensão com quem a tortura. No entanto, o que sobra são quase sempre sentenças brandas, discursos morais resgatados do fundo do baú.

A verdade é que nada disso deveria ser necessário. Nenhuma violência deveria ser necessária para que uma mulher pudesse simplesmente existir sem medo, nem para que uma jovem menina-criança pudesse andar sem desprezo da blasfêmia, ou do sinistro nos escuros das vias.

O que me revolta é saber que, ainda hoje, em muitos tribunais, o comportamento da vítima é colocado em pauta: sua roupa, suas escolhas, seu passado afetivo, sua vida sexual. É como se qualquer gesto, qualquer liberdade, qualquer erro, qualquer escolha pudesse legitimar a sua morte.

O que me deixa indignado é que, mesmo depois de tantas mortes, de tantas campanhas, de tantas leis, ainda exista quem tente relativizar, minimizar, romantizar o feminicídio. Não é “briga doméstica”, não é “crime passional”. É FEMINICÍDIO.

É assassinato de mulheres por serem mulheres, sejam companheiras, esposas, ex-companheiras, namoradas, amantes, desconhecidas. E mesmo as instituições que deveriam proteger, punir e educar, muitas vezes reproduzem, de forma direta, ainda carregam a lógica perversa que a sustenta.

Essa lógica diz que a vida do homem, sua autoestima, seu orgulho, seu “nome” valem mais do que o corpo e a vida das mulheres. Essa lógica diz que elas é que devem se adaptar, recuar, ceder, suportar. Elas são que devem “se cuidar mais”, “falar menos”, “aceitar um pouco mais”, “ter paciência”, “não provocar”, “não se separar”.

Se um ex-presidente da República, O GOLPISTA, disse a uma colega da Câmara dos Deputados “…Eu não sou estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar, porque você não merece”, e o atual LULADRÃO (?!) fala descaradamente, “…pesquisas mostram que depois de jogo de futebol, aumenta a violência contra a mulher.Inacreditável. Se o cara é corintiano, tudo bem, como eu.”

Que eleitoras são essas BOLSOMINIONS que têm um MITO misógino, que despreza mulheres e normaliza a violência com tanta naturalidade? E as PETRALHAS, que descaradamente assumem uma paixão doentia, esquecendo-se das vezes em que o próprio discurso político foi conivente com a objetificação feminina, com o machismo estrutural, com a piada pronta? Ou terão esquecido a “companheira” da Faria Lima, do LULA I e II.

O que me resta, nessa crônica indignada, é recusar completamente essa velha retórica: a máscara rotunda para encobrir o medo masculino de perder o controle, de não aceitar a autonomia feminina, de não suportar que a mulher exista para além da sua posse.

O FEMINICÍDIO que corre hoje quase sem debate profundo, quase sempre transformado em estatística ou em manchete de um dia, revela que, por baixo das leis, ainda lateja esse antigo veneno.

A única honra legítima é a de defender o direito de cada mulher de viver, de desejar, de amar e de deixar de amar sem morrer por isso. Hoje, as mulheres são excluídas dos TRIBUNAIS FEDERAIS.

Ainda não ouvi notícia de uma Ministra SUPREMA com o marido sócio de escritórios ou com filhos dirigindo seus institutos. O nível de distonia do ser feminino é muito menor em todos os parâmetros sociais, do que dos homens.
A agonia me toma ao perceber A SUPREMA TRAGÉDIA FEMININA, da exclusão das mulheres dos locais de decisão, na raiz dos poderes, na raiz das empresas, nos conselhos, nas estatais, que negam às mulheres o direito de ocupar o que é de direito.

À FABIANA AMIGA RENDEIRA DE MEANDROS…

 

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