PENSAMENTO PLURAL Território de castas, por Durval Leal Filho

Em seu comentário, o cineasta Durval Leal reflete sobre a concentração de poder que se estabelece, neste período do ano, em Camboinha, estabelecendo, conforme diz, “um território de castas”. Diz: “Essas castas, geralmente formadas por juízes, desembargadores, promotores, advogados, senhores ricos e empresários, tomam conta do que julgam ser seu: a orla, a praia, a beira-mar”, que “se instalam com jet skis, fechando a beira-mar”. Confira íntegra...

No verão, Camboinha se transforma em um território de castas. Ali, classes sociais e castas determinantes extrapolam o que se entende por ética e por cidadania.

Essas castas, geralmente formadas por juízes, desembargadores, promotores, advogados, senhores ricos e empresários, tomam conta do que julgam ser seu: a orla, a praia, a beira-mar.

Os senhores do capital se instalam com jet skis, fechando a beira-mar.

Estacionam carretas e reboques, que aguardam, seus senhores, donos dos brinquedos, para que cheguem e coloquem seus transportes aquáticos de lazer e de luxúria na água. O espaço público, que deveria garantir circulação e convivência, passa a ser tratado como área de manobra e de exibição. O que é de todos, por alguns dias, é administrado por poucos na prática.

A mesma dinâmica se repete nas margens de Areia Vermelha. Esses senhores, testam a capacidades de carga e desempenho dos motores das lanchas, muitas delas com porte de iates sofisticados, em um ambiente sensível. A agressão é direta: ruído, velocidade, ondas, ancoragens, hélices, movimentação constante. O bioma costeiro, que exige cuidado e controle, recebe um uso intensivo que, quando não ordenado, se transforma em pressão contínua sobre fauna e flora.

As áreas costeiras , Areia Vermelha, ilha de maré, com sua linha de recifes, sofrem o impacto brutal desse comportamento. Esses senhores de castas, donos de iates e barcos, inundam a praia com farra e discussões inócuas sobre preservação “de alhures”, como se o lugar presente não exigisse responsabilidade imediata. Falam de preservação enquanto ocupam, ruem e desgastam, convertendo o que deveria ser paisagem comum em cenário de ostentação privada.

Exibem-se nos mais imponentes atributos econômicos: barcos potentes, jet skis novos, brincadeiras e mimos de senhores ricos. O que se apresenta como lazer, porém, opera como marcação territorial. A lógica é simples e dura: “podemos”, “chegamos”, “tomamos”, “ocupamos”. A praia vira vitrine, e a vitrine vira argumento. E, quando a vitrine domina, o uso público cede lugar à performance do poder econômico.

O mais incrível, nesse quadro, é a ausência de fiscalização. Não há patrulhamento do Estado, não há presença efetiva da Prefeitura Municipal de Cabedelo, nem dos órgãos ambientais, nem a atuação ostensiva do Ministério Público que venha chamar a atenção desses senhores das castas. A omissão se torna parte do problema, porque, sem contenção, a prática se naturaliza e se repete como rotina sazonal.

O patrimônio da orla é um patrimônio difuso, deriva do uso comum e do direito coletivo. Toda a população tem direito de uso, de permanência e de ir e vir. Não se deve sujar o que é público, nem deixar reboques que atrapalhem, nem transformar a faixa de areia em estacionamento de luxo, nem obstruir passagem como se o litoral tivesse dono. Não se pode tomar do público para dar ao privado, nem por gesto, nem por pressão, nem por costume.

Assim segue a retórica, a praia de Camboinha, no verão, vira um espaço de castas para aparecer, para se mostrar, para dizer que podem, para insinuar que aquilo é “direito” deles. Essa dinâmica revela uma cidadania seletiva, na qual o poder econômico dita o acesso ao litoral.

Elites judiciais, guardiãs putativas da lei, invertem os princípios que sustentam em tribunais. Juízes e promotores, que deveriam zelar pelo bem comum, comportamse como se pudessem privatizar a praia por meio de seus brinquedos motorizados, do volume de seus equipamentos e do silêncio das instituições.

Os jet skis rasgam as águas rasas, perturbando recifes que abrigam vida marinha frágil: peixes, crustáceos, algas, micro-habitats que compõem ecossistemas singulares na costa paraibana. Os motores roncam alto, espalham óleo e ruído, e produzem uma presença que não é apenas sonora, mas também simbólica: uma afirmação de domínio.

Enquanto isso, carretas e reboques obstruem o fluxo e o ir e vir dos banhistas, impondo barreiras concretas na areia e, por consequência, definindo quem passa, quem para e quem recua.

Nas margens de Areia Vermelha, o espetáculo se agrava. Iates ancorados bloqueiam horizontes e reorganizam o mar como se fosse piscina particular. A farra se estabelece, e não se trata de negar o lazer, mas, quando o lazer se impõe sem ordenamento, o excesso vira regra. Churrascos, bebidas e risadas estridentes ignoram a sensibilidade do bioma.

A ilha de maré, com recifes e zonas rasas, não suporta o mesmo padrão de uso que um espaço urbano impermeável, porque ali cada gesto repercute no substrato, na água e na vida.

Recifes próximos, barreiras naturais contra erosão, são agredidos por hélices que revolvem sedimentos e sufocam organismos bentônicos, seres vivos que habitam o fundo ou o substrato de ambientes aquáticos, como oceanos, rios, lagos e estuários.

A flora costeira, com sua restinga de dunas e vegetação pioneira, padece com o tráfego de veículos e com o lixo descartado. O resultado é uma luxúria predatória: o lazer de poucos desestabiliza o equilíbrio ecológico de muitos, e o que deveria ser paisagem compartilhada é tratado como extensão do quintal de quem pode pagar.

A omissão estatal é o cerne da crítica. Onde está a Guarda Municipal de Cabedelo? Onde estão o Ibama, a Sudema e a Capitania dos Portos? Onde está o Ministério Público, com seus promotores que frequentam essas festas, diante do desrespeito ao Código de Posturas Municipais e à Lei de Crimes Ambientais?

O patrimônio difuso, conceito jurídico que garante o uso coletivo de praias, rios e mares, é pisoteado em pleno dia, diante de todos, sob um acordo tácito: quem tem poder ocupa; quem não tem, recua.

A Constituição Federal, no artigo 225, afirma o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Entretanto, aqui prevalece a lei do mais forte: o capital que compra reboques, barcos e silêncios. Camboinha, joia da Paraíba, vira palco de ostentação sazonal.

No verão, pescadores artesanais e famílias humildes recuam, cedendo espaço aos “senhores do capital”. Jet skis ziguezagueiam perigosamente perto de banhistas; carretas formam barricadas na areia; iates monopolizam o horizonte.

A discussão inócua sobre preservação, trocada entre os próprios invasores, tornase contradição exposta. Falam de sustentabilidade enquanto poluem; posam de protetores enquanto desgastam. Essa apropriação não é nova: repete-se ciclicamente, reforçada pela impunidade e pelo enfraquecimento prático das regras. As castas se sentem donas porque o Estado fraqueja, e o fraquejo vira licença.

O resultado é uma praia fragmentada: de um lado, o luxo barulhento; do outro, o povo empurrado para fora. A ética da cidadania, ir e vir livre, uso comum do litoral, evapora diante do ronco dos motores.

Para romper esse ciclo, é necessária ação objetiva: fiscalização ostensiva, aplicação de multas, ordenamento claro, demarcação de zonas de uso, controle de acesso e presença institucional contínua.

Enquanto as castas dominarem sem contenção, Camboinha permanecerá refém.

É o verão da desigualdade, em que o mar público vira quintal privado.

A denúncia, sozinha, não resolve; mas a denúncia é a recusa do silêncio. E, diante do que se repete, o mínimo é reafirmar: praia é bem comum, patrimônio difuso, direito coletivo.

O LITORAL NÃO É UM TÍTULO DE PROPRIEDADE. É UM ESPAÇO DE CIDADANIA.

 

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