PENSAMENTO PLURAL Um retrato de escolhas: o peso do ajuste fiscal no Brasil, por Palmarí de Lucena
O ajuste fiscal proposto pelo governo brasileiro reflete uma tentativa de equilíbrio financeiro, mas esbarra em escolhas equivocadas. Ao priorizar cortes em áreas essenciais e isenções fiscais para setores ricos, o impacto sobre as desigualdades é mínimo, diz o escritor Palmarí de Lucena em seu novo comentário, forte por sua contemporaneidade. “A crítica de especialistas como Marcelo Medeiros sugere que uma reforma tributária progressiva seria fundamental para um desenvolvimento sustentável e justo”, pontua. Confira íntegra…
Desde que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou o pacote de corte de gastos públicos planejado pelo governo, na última quarta-feira de novembro, o Brasil tem vivenciado intensas reações à proposta. O mercado respondeu com severidade, levando o dólar a ultrapassar a marca histórica de R$ 6 logo no dia seguinte ao anúncio, onde permaneceu como reflexo da insatisfação com o que foi considerado um ajuste fiscal insuficiente. Essa alta expressiva foi acompanhada de críticas e debates que também reverberaram no Congresso. Enquanto o mercado esperava medidas mais rigorosas, a bancada governista, por sua vez, demonstrou preocupação com os impactos nos programas sociais, especialmente no Benefício de Prestação Continuada (BPC) e no reajuste do salário-mínimo.
Diante desse cenário, o governo enfrentou dificuldades para garantir o apoio necessário até mesmo dentro de sua base política. Foi preciso negociar com parlamentares do próprio partido para viabilizar a aprovação das medidas propostas. Entre os críticos mais ponderados está Marcelo Medeiros, sociólogo e um dos maiores especialistas em desigualdades do país, que atualmente realiza pesquisas na Universidade Columbia, nos Estados Unidos. Embora evite críticas diretas ao ministro, Medeiros não poupa argumentos sobre os problemas das medidas apresentadas. Ele destaca que as isenções de Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil mensais representam um impacto mínimo diante da necessidade de rever os volumosos subsídios fiscais concedidos a diversos setores produtivos. Em 2022, essas renúncias tributárias somaram R$ 581 bilhões, ou mais de 5% do Produto Interno Bruto, segundo dados oficiais.
Para Medeiros, o ajuste fiscal, nos moldes propostos, dificilmente trará impactos significativos na redução das desigualdades. Ele ressalta que o aumento sistemático do salário-mínimo foi historicamente o principal fator na diminuição da pobreza no Brasil, e que limitar esses reajustes significa frear avanços nessa área. Ainda assim, reconhece a importância da responsabilidade fiscal, embora frise que qualquer tentativa de ajuste deva começar por uma reestruturação tributária que incida sobre o topo da pirâmide de renda. Ele critica, em particular, o Congresso, que, segundo ele, atua como uma barreira para avanços econômicos ao preservar interesses específicos e resistir a reformas estruturantes.
A análise de Medeiros enfatiza que o principal problema do ajuste proposto está em sua escolha de alvos. Cortar gastos de áreas essenciais, como saúde e educação, é um equívoco que compromete diretamente a qualidade de vida da população e a produtividade futura do país. Ele argumenta que subsídios fiscais a setores pouco dinâmicos representam desperdício e deveriam ser eliminados antes de qualquer corte nos investimentos sociais. No entanto, ele reconhece a dificuldade política de se implementar medidas como a revisão dos regimes tributários especiais ou a tributação de lucros e dividendos de pessoas físicas.
Outro ponto crítico levantado por Medeiros é a falta de progressividade do sistema tributário brasileiro. Ele observa que o Imposto de Renda atual faz pouco para corrigir desigualdades, sendo caracterizado por alíquotas baixas no topo da escala e regimes especiais que favorecem grupos econômicos específicos. Para ele, uma reforma eficaz deveria ampliar a base tributária, acabar com privilégios como o Simples Nacional e o Lucro Presumido, além de revisar isenções que beneficiam setores como o agronegócio e o mercado financeiro. A isenção de IR para quem ganha até R$ 5 mil, no contexto atual, é vista por Medeiros como uma medida paliativa, que não enfrenta as raízes do problema.
Ele também critica o modelo previdenciário brasileiro, apontando a necessidade de ajustes que garantam sua sustentabilidade sem comprometer seu papel social. Medeiros defende idades mínimas de aposentadoria mais altas e maior contribuição de grupos que se aposentam precocemente. Contudo, adverte que cortar benefícios ou limitar programas como o BPC é moralmente inaceitável, especialmente num país marcado por desigualdades profundas.
Ao longo de sua análise, Medeiros sublinha que qualquer corte de gastos deve considerar os efeitos secundários sobre o desenvolvimento do país. Investimentos em saúde, educação e qualificação profissional têm impactos que vão muito além dos números imediatos, influenciando a produtividade, a qualidade de vida e a estabilidade econômica no longo prazo. Ele conclui que, sem uma atuação mais responsável do Congresso e sem a implementação de uma reforma tributária abrangente, o Brasil continuará refém de políticas fiscais que perpetuam desigualdades e inviabilizam o crescimento sustentável.
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