
O texto do escritor Palmarí de Lucena denuncia a substituição da ciência por convicções na política de imunização dos EUA, exemplificada pela retirada da dose universal contra hepatite B ao nascer, sem base em evidências. Aponta o desmonte da governança científica, nomeações ideológicas e decisões ignorando especialistas. Alerta para o efeito global do negacionismo e traça paralelo com o Brasil, onde a confiança no Programa Nacional de Imunizações foi corroída. Conclui: sem ciência, a política gera risco evitável. Confira íntegra...
Há momentos em que a política atravessa a ciência; e outros, mais graves, em que a ocupa. O que se vê hoje na política de imunização dos Estados Unidos é este segundo cenário: a substituição da medicina baseada em evidências por convicções pessoais travestidas de prudência. A recente decisão do comitê federal de vacinas de abandonar a dose universal de hepatite B ao nascer não é mera “flexibilização”. É um símbolo de erosão institucional.
A hepatite B não é detalhe. Em recém-nascidos, converte-se em doença crônica na imensa maioria dos casos, com risco concreto de cirrose e câncer hepático. A dose ao nascer é um seguro silencioso: barato, eficaz e de longo prazo. É por isso que a Organização Mundial da Saúde e a Academia Americana de Pediatria endossam a aplicação universal. Mudar essa diretriz exige provas robustas. Não as houve.
A comparação com países nórdicos é retórica confortável. Dinamarca e Finlândia têm cobertura pré-natal quase total, rastreamento rigoroso e sistemas integrados de dados. Os Estados Unidos, não. Em território americano, gestantes ainda ficam sem testagem — e os testes falham. A dose ao nascer existe justamente para cobrir essas lacunas. Retirá-la é apostar contra a realidade.
O processo decisório expõe outro problema: o desmonte da governança científica. Conselheiros demitidos, nomeações ideológicas, reuniões caóticas, protagonismo de figuras que difundiram tratamentos desacreditados na pandemia. Especialistas do próprio CDC alertaram que a recomendação resultaria em dano. Foram ignorados. Um cientista classificou o pacote como a decisão “menos científica e mais ilógica” da história recente da saúde pública americana. É difícil achar exagero quando a blindagem técnica é trocada por palanque.
O episódio não é isolado. O comitê sinaliza que revisitará todo o calendário infantil e já ensaia ataques a componentes consagrados, como sais de alumínio — apesar de estudos robustos, com milhões de crianças, não encontrarem associação com autismo. Ciência não funciona por insinuação, mas por evidência. Não por narrativas mobilizadoras, mas por testes replicáveis.
Não se trata, convém dizer, de negar o direito à dúvida. Desconfiar é parte do método científico; desacreditar sem dados é militância. A fronteira entre prudência e negacionismo é clara: prudência pede mais estudos; negacionismo cria suspeitas para deslegitimar o que já foi demonstrado.
O mais inquietante é o efeito dominó. Quando a maior potência sanitária do planeta relativiza protocolos que salvam vidas, o ruído ecoa. Países com sistemas mais frágeis tendem a importar a confusão. Antivacinismo é contagioso — em política pública, a metáfora tem ironia trágica.
É aqui que o alerta americano encontra o Brasil de frente. Por décadas, o Programa Nacional de Imunizações foi uma referência internacional, capaz de alcançar coberturas comparáveis às de países desenvolvidos e erradicar doenças como a poliomielite. Esse patrimônio não foi desmontado por escassez de vacinas, mas por erosão da confiança. Durante a pandemia, discursos oficiais relativizaram a gravidade do vírus, promoveram medicamentos sem comprovação e semearam dúvidas sobre os imunizantes. A consequência foi imediata e mensurável: queda persistente da cobertura vacinal infantil, reaparecimento de doenças controladas e naturalização da hesitação como comportamento social.
O dano mais profundo, contudo, é cultural. Um programa técnico foi arrastado para o terreno das disputas identitárias. O que era consenso sanitário virou opinião. O que era evidência passou a ser tratado como “narrativa”. A vacinação deixou de ser pacto coletivo para tornar-se gesto performático.
A lição é direta. O PNI não depende apenas de seringas e geladeiras: depende de institucionalidade, autoridade técnica e comunicação pública responsável. Sem isso, imuniza-se menos contra vírus e mais contra a razão — e o preço dessa inversão chega, invariavelmente, na forma de adoecimento evitável.
Vacinas são triunfo civilizatório, não objeto de teste ideológico. Quando convicções ocupam o lugar das evidências, a sociedade paga com morbidade o que poderia pagar com prevenção. Em saúde pública, ciência não admite atalhos. E a política, quando resolve ignorá-la, não produz liberdade — produz risco.
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