PENSAMENTO PLURAL Venezuela: entre o erro e o abismo, por Palmarí de Lucena

O escritor Palmarí de Lucena alerta como a “crise venezuelana é um espelho sombrio das fragilidades latino-americanas”. Cita, então como “o Acordo de Barbados reacendeu esperanças de transição democrática, mas as denúncias de manipulação eleitoral e a aparência de fraude reacenderam tensões internas e externas”. Diante da tentação de uma intervenção estrangeira, o texto adverte: nenhuma democracia é instalada pela força. Para o Brasil, os riscos vão além da fronteira — atingem a soberania, a economia e o equilíbrio político de toda a região. Confira íntegra…

Sim, dirão alguns — e com razão —, o que fazer com Nicolás Maduro? Como responder a um governante que manipula o processo eleitoral, cerceia adversários e esvazia instituições? Como confiar em compromissos internacionais de quem tantas vezes transformou a promessa em instrumento de poder? As perguntas são legítimas, mas a pressa em respondê-las com a força seria repetir o erro de confundir justiça com revanche.

A Venezuela tornou-se um espelho incômodo da América Latina: uma nação exausta, dilacerada pela pobreza e pela descrença, onde o exílio virou destino e o voto, suspeita. O Acordo de Barbados, assinado em 2023 entre governo e oposição com mediação da Noruega e apoio dos Estados Unidos, União Europeia e do Brasil, parecia anunciar uma fresta de diálogo. Prometia eleições observadas, garantias institucionais e respeito ao resultado das urnas. Mas o prosseguimento do processo eleitoral trouxe denúncias de manejo opaco, intimidação de eleitores e aparência de fraude na contagem dos votos — sinais de um país ainda prisioneiro de suas próprias contradições.

É nesse ponto que a tentação das soluções fáceis ressurge. Vozes dentro e fora do continente voltam a defender uma intervenção externa, travestida de “missão de libertação”. Seria, contudo, uma aposta cega na repetição de um erro antigo. A história mostra que invasões não restauram democracias; apenas substituem um autoritarismo por outro, espalhando ruínas onde antes havia esperança. Nenhum bloqueio ou cerco militar corrige urnas violadas — apenas multiplica o sofrimento de quem já vive à margem.

Para o Brasil, uma ação armada estrangeira na Venezuela seria desastrosa. A fronteira norte, já sobrecarregada por fluxos migratórios, transformar-se-ia em rota de fuga de milhares de civis. Hospitais, escolas e serviços públicos em Roraima colapsariam sob a pressão humanitária. A economia local, dependente do comércio transfronteiriço, seria duramente afetada. E o vácuo de poder deixado por uma guerra abriria espaço para contrabandistas, grupos armados e facções criminosas, aumentando a vulnerabilidade da Amazônia e comprometendo a soberania nacional.

Mas o efeito mais sutil — e talvez mais perigoso — seria interno. A transformação da crise venezuelana em bandeira política envenena o debate público brasileiro. As divisões ideológicas assumem as cores do conflito, e parte da cena política passa a defender, sem medir consequências, uma intervenção norte-americana. O risco é claro: importar uma guerra de narrativas para dentro do país, corroendo consensos mínimos sobre soberania, segurança e estabilidade. Nessa atmosfera polarizada, perde-se o senso de proporção e de responsabilidade nacional.

O Brasil, historicamente mediador e defensor da solução pacífica de controvérsias, tem o dever de preservar sua coerência diplomática. É possível condenar abusos e exigir transparência sem se alinhar a projetos de dominação travestidos de altruísmo. O equilíbrio — tão difícil quanto necessário — consiste em apoiar o diálogo, sustentar auditorias eleitorais independentes e promover ajuda humanitária sem participar de aventuras militares.

A América Latina já pagou caro por suas ilusões de salvação externa. O continente conhece bem o roteiro: o discurso moral, o desembarque triunfal e, depois, o silêncio sobre as ruínas. O verdadeiro desafio é ajudar a Venezuela a reconstruir instituições e confiança, sem repetir o ciclo de tutela e dependência.

No fim, não se trata de defender Maduro nem de absolver Washington. Trata-se de lembrar que nenhuma nação se reergue pela força de outra. Democracia não é operação de resgate; é processo, paciência e convicção. A ética internacional começa pelo limite — o limite de não transformar o sofrimento alheio em palco de ambições políticas.

A Venezuela precisa de eleições verdadeiras, de instituições sólidas e de mediação honesta. O Brasil, guardião involuntário desse espelho, deve lembrar ao mundo — e a si mesmo — que quando a força substitui a razão, ninguém vence. Todos retrocedem.

 

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