
Em seu comentário, o cineasta Durval Leal Filho levanta questionamentos sobre o comportamento de alguns ministros, que, “hoje, se confundem com o próprio caos urbano: sem ética, nem moral, semelhantes aos gestores públicos que aprenderam a driblar a lei com a mesma habilidade com que desviam de buracos no asfalto.” Confira íntegra…
Existe almoço grátis? Nas Supremas Cortes, às vezes parece que sim.
O que definitivamente não existe é estacionamento.
O caos urbano está instalado, não apenas nas ruas, mas na alma institucional do país. Não há vagas para a ética, nem para a moral, reservadas há muito tempo, mas ocupadas indevidamente por alguns senhores ministros, parlamentares e gestores que decidiram estacionar onde bem entendem, ignorando placas, faixas, limites e, sobretudo, o olhar do cidadão comum.
Os ministros, hoje, se confundem com o próprio caos urbano: sem ética, nem moral, semelhantes aos gestores públicos que aprenderam a driblar a lei com a mesma habilidade com que desviam de buracos no asfalto.
Ética e moral, no entanto, não são conceitos abstratos, nem adornos retóricos para discursos solenes. Ética e moral são, antes de tudo, consistem em seguir o que está estabelecido nos decretos, na lei, no ordenamento jurídico vigente. É cumprir a regra mesmo quando ninguém está olhando. É saber que o cargo não é blindagem, mas responsabilidade ampliada.
Além do jurídico, sempre foi necessário trabalhar a ordem técnica. Nenhuma cidade funciona sem engenharia, sem cálculo de capacidade de carga, sem perímetro definido. Nenhuma democracia funciona sem limites claros, sem freios, sem balizas. A ordem moral não é acessória: ela sustenta a técnica e dá sentido à norma. Quando essa engrenagem se rompe, o que resta é improviso, justificativa posterior e a velha frase cínica de que “sempre foi assim”.
Perdemos todos os sentidos e perímetros na ética e na moral. Não há mais estacionamento nos relacionamentos institucionais, na praça dos direitos coletivos. Ninguém respeita mais o parâmetro da baliza. Invade-se o espaço do outro, atropelase o rito, relativiza-se a regra. A pergunta insiste: aonde chegaremos? A uma cidade onde carros oficiais tomam todos os espaços da rua, intimidando os pequenos veículos, obrigando-os a circular eternamente, sem nunca encontrar uma vaga legítima?
Ou chegaremos ao ponto em que dicas de ministros, gestos ambíguos, silêncios estratégicos e decisões seletivas corroerão de vez a cidadania, lançando dúvidas definitivas sobre o que ainda se pode chamar de moral pública? Quando o exemplo que vem de cima falha, a base racha. A pedagogia do poder é sempre silenciosa, mas profundamente eficaz.
Não existe almoço grátis, muito menos estacionamento na cidade. Toda escolha tem custo. Toda omissão cobra juros. Dentro dessa ótica, precisamos de baliza. Precisamos verificar o moral. Onde estaciona a Suprema Corte diante da população? Onde estaciona o Legislativo, quando transforma mandato em negócio? Onde estaciona o Executivo, quando governa olhando mais para o retrovisor do poder e da reeleição do que para o para-brisa da realidade social?
A baliza nos deu a possibilidade de saber estacionar: ensina distância, cuidado, limite. A baliza técnica nos deu noção do nosso perímetro. Já a baliza ética deveria ensinar algo ainda mais básico: até onde posso ir sem violar o espaço do outro e a confiança coletiva. O problema é que a Suprema Corte, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário parecem ter desaprendido essa manobra simples. Avançam, recuam, raspam na calçada da legalidade e fingem não ouvir o barulho.
Como proclamar princípios em praça pública se, nos bastidores, eles são negociados? Como exigir decoro se o próprio conceito foi esvaziado por sucessivos exemplos de privilégios naturalizados? Não pelo lado A nem pelo lado B: é por castas de juízes, promotores, procuradores e diplomatas. Todo lado deve ter ética e moral, porque ética não é ideologia, é fundamento. Moral não é discurso, é prática reiterada.
É nesse ponto que a velha máxima retorna com força: “à mulher de césar não basta ser honesta, é preciso parecer honesta”. Os seres supremos da República, ministros, deputados, senadores, presidentes, não podem viver apenas da legalidade estrita, do “não fiz nada ilegal”. Precisam viver da honra. Precisam compreender que a aparência de correção é parte inseparável da legitimidade democrática. Imaginem as conivências com escritórios de filhos e mulheres de Ministros, transitando em defesas causas milionárias como fosse algo normal. Chega ser cínismo.
Quando um ministro aceita benefícios indiretos, quando um parlamentar negocia favores à sombra da lei, quando um presidente relativiza a gravidade de seus atos, não é apenas sua biografia que está em jogo, mas o crédito simbólico das instituições. Orçamentos secretos e causas acordadas.
E crédito, uma vez perdido, não se recompõe com discursos técnicos ou notas oficiais. Crédito moral se constrói lentamente e se perde em alta velocidade. A população, que observa tudo do ponto de ônibus, percebe quando o carro oficial para em vaga proibida e ninguém multa. Percebe quando há voo grátis para poucos e tarifa cheia para muitos. Percebe quando existe honorário para a mulher de César, enquanto o cidadão comum paga a conta sem sequer saber o valor final.
O drama institucional brasileiro não é apenas jurídico, é ético. Não é apenas político, é moral. Criamos um sistema onde tudo pode ser explicado, mas quase nada pode ser justificado. Onde a retórica substitui a responsabilidade e a técnica serve, muitas vezes, para esconder escolhas morais questionáveis. Nesse ambiente, a exceção vira regra, e a regra vira incômodo.
A crônica da República contemporânea é a crônica do estacionamento impossível. Todos querem parar, poucos querem respeitar a vaga. Todos reivindicam direitos, poucos aceitam limites. E enquanto isso, a cidade democrática se congestiona, buzinando indignação, acumulando frustração, perdendo a fé nas placas que ainda insistem em dizer “proibido”.
Talvez ainda haja saída. Talvez seja preciso reaprender o básico: reduzir a velocidade, olhar os espelhos, reconhecer e respeitar a faixa, aceitar que nem todo espaço é nosso. Ética não é heroísmo, é rotina. Moral não é espetáculo, é coerência. Quando os poderes entenderem isso, talvez não exista almoço grátis, mas haverá, ao menos, um lugar legítimo para estacionar a honra.
QUEM CORRIGIRÁ AS INCONGRUÊNCIAS AMORAIS(???).
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