Uma peregrinação de “Quarenta Dias” pelas ruas com Maria Valéria
Bastaram “Quarenta Dias” para lamentar que deveria ter descoberto Maria Valéria Rezende antes. Em quatro dias, acompanhei com sofreguidão a maestria como conduziu sua personagem Alice pelas ruas de Porto Alegre em busca de um Cícero Silva – também migrante da Paraíba como ela – após ter se desencantado com a vida que sua filha tinha pasteurizado para ela.
Com a decepção, ela inicia uma busca que se torna kafkaniana por um rapaz desconhecido, numa cidade desconhecida e lidando com desconhecidos. Então, a busca se traduz na fuga de um figurino de vida que ela tanto rejeitava absolutamente, pois era a negação do projeto que ela construíra para si como professora aposentada, com tempo para ler e viajar, tudo que antes não tivera tempo para fazer.
Maria Valéria já confessou que toda a história foi inventada mesmo. Não há nada de autobiográfico. Mas, o detalhe é que a autora “criou” toda a história e, depois, foi a Porto Alegre “testar”, palmilhando praças, becos, ruas, favelas e até hospitais de Porto Alegre, passando-se por moradora de rua, e tentando sentir o que essas pessoas sentem morando à margem do conforto.
O que poderia ser uma história banal ou até inverossímil, ganha amplitude artística na condução, aparentemente descuidada, mas claramente segura, da escrita de Maria Valéria. Não há palavras à toa. Está tudo matematicamente onde deveria estar. Até mesmo o caderno que, ironicamente, tem a Barbie na capa, onde Alice escreve suas peripécias dos quarenta dias, longe do controle da filha e do radar de amigos e parentes. Uma personagem jogada à própria sorte.
Para Alice, bastaram quarenta dias para descobrir que não está num país das maravilhas, quando começa a ouvir as histórias das pessoas, em boa parte migrantes, que sofrem as agruras de uma vida longe de casa, sempre na esperança de encontrarem um refrigério para suas angústias. E bastam apenas quatro dias para descobrir o talento de Maria Valéria Rezende de contar uma história, e capacidade para conduzir o leitor por uma avenida de palavras escritas com o tirocínio de quem entende do assunto.
(Quarenta Dias – Editora Alfaguara – 246 páginas)