PENSAMENTO PLURAL Desigualdade dos passaportes e a ilusão de um mundo sem fronteiras, por Palmarí de Lucena
Em sua nova crônica, o escritor Palmarí de Lucena, observa como, no mundo atual, a liberdade de viajar é um privilégio reservado para alguns países, refletindo desigualdades econômicas e perpetuando a exclusão dos mais pobres. “A realidade é marcada por restrições e barreiras que aprisionam muitas pessoas em uma condição de isolamento”, complemente. Para o autor, há uma dissonância entre o discurso e a prática, onde países como o Brasil buscam se alinhar às aspirações globais de acesso e mobilidade, mas ainda adotam políticas seletivas que mantêm a desigualdade. Confira íntegra…
Em um mundo justo, a liberdade de viajar seria um direito universal, no entanto, o privilégio de cruzar fronteiras livremente é majoritariamente reservado para cidadãos de nações europeias e alguns países asiáticos de alta renda, como demonstrou o ano de 2023. França, Alemanha, Itália e Espanha, respaldadas pela robustez econômica da União Europeia, e nações como Japão e Cingapura mantêm sua posição de vanguarda no ranking global dos passaportes. Não é coincidência que tal prestígio reflita seu desempenho econômico, perpetuando uma dinâmica já conhecida: livre acesso geralmente se alinha com prosperidade financeira.
Os consultores de residência e cidadania para a elite financeira observam um aumento na média de destinos a que se pode viajar sem visto – quase o dobro desde 2006. Porém, isso mascara uma realidade mais complexa e, confesso, injusta. Enquanto alguns colhem os frutos deste mundo mais “aberto”, muitos países – predominantemente os mais pobres – contemplam um abismo crescente de restrições de movimento.
Os acadêmicos holandeses Henk van Houtum e Annelies van Uden cunharam uma metáfora potente ao referirem-se aos vistos como “prisões de papel”. Segundo eles, as nações desenvolvidas erguem barreiras contra quem consideram riscos econômicos ou de segurança, relegando, muitas vezes, os mais pobres a uma condição de exclusão e isolamento. Nessa lógica, uma “aristocracia global”, determinada pelo mero acaso do local de nascimento, aprisiona uma “classe inferior global”. Esta é a realidade contundente do nosso sistema internacional de mobilidade.
Mudanças nas políticas de vistos refletem a constante negociação de poder e segurança. Exemplos paradigmáticos incluem o Canadá, que estendeu a mão a 13 nações com isenção de visto no último ano, e o Reino Unido, que restringiu a entrada de hondurenhos devido ao aumento de pedidos de asilo. Vale destacar o salto progressivo dos Emirados Árabes Unidos, que passaram do 55º para o 11º lugar em uma década, adicionando 106 destinos à sua lista sem imposição de visto.
Focando no Brasil, que ocupa a 18ª posição no Henley Passport Index 2023, com acesso sem visto prévio a 170 países, notamos um paradoxo. Embora o Brasil demonstre intenções de estabelecer acordos de isenção de visto com Estados Unidos, Canadá e Austrália, baseados na reciprocidade, numerosos países ainda necessitam de visto para ingressar em território brasileiro. O que é mais intrigante é que tal requerimento aplica-se quase que universalmente aos integrantes da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, com exceção de Portugal. Tal fato revela uma incoerência palpável entre o discurso pró-integração do Sul Global promovido pelo governo brasileiro e a prática mais restritiva de sua política de vistos.
Assim, no âmbito das relações internacionais e mobilidade global, apontamos para uma dissonância evidente entre o discurso e a ação. De um lado, o Brasil se esforça para se alinhar às aspirações globais de acesso e mobilidade; de outro, pratica uma seletividade que ecoa as desigualdades que critica. Isso ilumina a complexidade e os desafios de avançar para um mundo verdadeiramente menos fronteiriço, onde a igualdade de oportunidades para cruzar fronteiras não seja apenas um ideal distante, mas uma realidade cotidiana.
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