“Leão XIV, filho de Chicago e alma andina, não apenas sucede a Francisco — ele o prolonga”, diz o escritor Palmarí de Lucena, horas após a fumaça branca da chaminé do Vaticano indicar a eleição de Robert Prevost. “Pastor de pés empoeirados, fala com o Norte e escuta o Sul, escolheu o barro do Peru à pompa de Roma, e por isso compreende o Evangelho na prática”, observa Palmarí, para que Prevost “é o papa da continuidade silenciosa: mas bacia e toalha, menos trono e dogma”. Confira íntegra…
Quem se inclina para lavar os pés sabe o peso de cada jornada.” Fragmento de uma homilia popular no interior do Peru.
A fumaça branca que se elevou sobre a cúpula de São Pedro naquela tarde de maio não trazia apenas um nome novo para os livros da Igreja, mas um sopro de continuidade e esperança. Robert Francis Prevost, agora Leão XIV, não surgiu como surpresa para os que acompanham os caminhos silenciosos da fé, mas como confirmação de uma semente que vinha sendo cultivada desde Francisco: a Igreja dos que caminham juntos.
Nascido em Chicago, Prevost poderia ter seguido a trilha segura do clericalismo institucional, das sacristias climatizadas e dos gabinetes romanos. Mas escolheu o Peru. Escolheu a poeira de Chiclayo, o calor das casas de adobe e o idioma das mães que rezam por filhos migrantes. Viveu mais de vinte anos entre comunidades andinas, não como visitante, mas como um de seus filhos — a ponto de ser naturalizado peruano. E não por formalidade, mas por pertencimento. Foi ali que aprendeu a carregar nos ombros o peso da exclusão e a traduzir o Evangelho em gestos e escuta.
Essa experiência marcou profundamente sua postura pastoral. Como Francisco, Prevost acredita em uma Igreja que se faz próxima, que não impõe verdades de cima, mas desce aos vales humanos para ouvir, servir e aprender. Ambos compartilham a convicção de que a autoridade na Igreja não deve ser exercida com bastão, mas com bacia e toalha — como quem lava os pés do próximo e reconhece sua dignidade. Se Francisco abriu as janelas do Vaticano para deixar entrar o cheiro das ovelhas, Leão XIV cruza essas janelas e vai ao encontro delas, sem temor do barro nos sapatos.
Sua trajetória recente como prefeito do Dicastério para os Bispos, durante o pontificado de Francisco, também revela um estilo pastoral comprometido com a renovação institucional da Igreja. Sob sua liderança, promoveu a escolha de bispos mais próximos das comunidades, abriu espaço para a escuta de mulheres nos processos decisórios e defendeu o princípio da sinodalidade como horizonte da missão eclesial. É um papa que não deseja recentralizar, mas descentralizar com sabedoria. Que entende que a Igreja precisa menos de controle e mais de confiança no Espírito que sopra onde quer.
Seus críticos, sobretudo entre os setores mais conservadores, tentam pinçar frases antigas ou posicionamentos doutrinários para enquadrá-lo em moldes que ele já superou pela prática. Mas Leão XIV não é um ideólogo. É um pastor. E por isso, quando fala de casais em situação irregular ou de comunidades LGBTQIA+, o faz com a prudência de quem sabe que a misericórdia é maior que os códigos. Seu compromisso doutrinário caminha de mãos dadas com o discernimento pastoral — não há contradição, mas maturidade.
É justamente essa maturidade que torna sua origem tão simbólica. Ser norte-americano de nascimento lhe deu ferramentas, estrutura e visão estratégica. Ser peruano por vivência e convicção lhe deu a alma. Essa dupla identidade não é um acaso biográfico, mas um dom para os tempos que correm. Ele fala com naturalidade tanto no idioma das conferências episcopais quanto na linguagem das cozinhas pobres da América Latina. Conhece os corredores de Roma, mas prefere os caminhos de terra. É, talvez, o primeiro Papa que pode traduzir simultaneamente o mundo que envia e o mundo que espera — sem se perder em nenhum dos dois.
Sua eleição não marca uma ruptura, mas um aprofundamento. Não é uma virada de página, mas o prolongamento de uma linha traçada com coragem por Francisco. Se o argentino semeou com ternura, o norte-americano-andino regará com constância. E talvez, no tempo próprio, essa Igreja sinodal e misericordiosa floresça com mais força do que jamais se imaginou. Porque agora tem à frente um homem que sabe onde pisa, sabe a quem serve — e sabe escutar o que o povo de Deus tem a dizer.
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