PENSAMENTO PLURAL Privilégios legislativos e o desafio da igualdade jurídica, por Palmarí de Lucena

Em seu comentário, o escritor Palmarí de Lucena da comparação de privilégios legislativos e imunidade parlamentar entre Brasil, Estados Unidos e países da União Europeia, que expõe “contrastes reveladores”. E apresenta algumas sugestões contra eventuais distorções. “Não basta restringir o foro ou limitar o alcance da imunidade parlamentar”, afirma Palmarí. Confira íntegra...

Num momento em que a confiança pública nas instituições democráticas está sob tensão crescente, a comparação entre os sistemas de imunidade parlamentar e foro privilegiado no Brasil, nos Estados Unidos e na União Europeia revela contrastes reveladores — e também dilemas comuns. O debate não é apenas jurídico; é moral e simbólico: até que ponto um parlamentar deve ser blindado da Justiça em nome da liberdade política?

No Brasil, o foro privilegiado cobre uma miríade de autoridades, incluindo deputados, senadores, ministros e governadores. Embora concebido para proteger o exercício livre do mandato, transformou-se, em muitos casos, em refúgio contra a responsabilização penal. O Supremo Tribunal Federal (STF), já sobrecarregado, tornou-se tribunal de primeira instância para centenas de autoridades, prolongando processos, favorecendo prescrições e dificultando condenações. A decisão de 2018 que restringiu o foro apenas a crimes cometidos durante o mandato e em função dele foi um avanço tímido, mas ainda incompleto.

Nos Estados Unidos, o sistema é bem mais restrito. A cláusula de imunidade legislativa da Constituição (Speech or Debate Clause) protege congressistas apenas por declarações e votos feitos no exercício do mandato Crimes comuns são investigados e julgados na Justiça ordinária, sem qualquer prerrogativa de foro. Os casos de condenações de parlamentares por corrupção, como os dos ex-deputados William Jefferson e James Traficant, reforçam a noção de que nenhum cargo público, por mais alto que seja, impede a marcha da Justiça.

Na União Europeia, o Parlamento Europeu também oferece imunidade a seus membros, mas ela é limitada e pode ser suspensa com relativa rapidez. Entre 2014 e 2019, o Parlamento suspendeu a imunidade de mais de 20 eurodeputados, inclusive de figuras de destaque.

A transparência do processo e a atuação independente do Tribunal de Justiça da União Europeia tornam a imunidade um mecanismo de proteção institucional – não um salvo-conduto pessoal.

Mas não basta restringir o foro ou limitar o alcance da imunidade parlamentar. É igualmente necessário coibir o uso da advocacia administrativa – quando autoridades utilizam suas funções para interceder em favor de interesses privados — e combater as manobras regimentais que emperram investigações, adiam votações de cassação e obstruem o acesso da Justiça a provas e testemunhas. Esses mecanismos de auto-proteção são formas disfarçadas de impunidade institucionalizada. Eles corroem a confiança do público e banalizam a ideia de responsabilidade pública.

É possível começar com três medidas simples e eficazes: limitar o foro privilegiado exclusivamente aos chefes de Poder, com prazos processuais definidos; proibir que parlamentares utilizem seus gabinetes como balcões de advocacia para causas privadas; e obrigar que pedidos de vista ou adiamentos regimentais tenham justificativas objetivas e prazos peremptórios. São ajustes técnicos, mas com imenso poder simbólico: mostram que o Parlamento não está acima da lei – apenas dentro dela.

 

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